Entre alguns sentidos da palavra “dharma”, em sânscrito, está “lei”, “ordem natural”, “aquilo que sustenta” ou “a própria natureza”. Há aquilo que sustenta a Vida como um todo, o dharma cósmico. Há o que sustenta a vida em sociedade, o dharma social na forma das relações interpessoais e dos valores que as perpassam. E há o dharma pessoal, aquilo que sustenta e amplia a nossa vida, o nosso estar no mundo e sua expressão.
O que nos sustenta à nível macro são as próprias leis do Universo, o suporte da vida. É a correlação causal e inteligente de forças que compõe os átomos, moléculas, órgãos de nosso corpo, até os planetas e os mantém numa ordem tanto química quanto física que nos possibilitam a vida aqui na terra. É a própria correlação de forças em nosso corpo que se organiza inteligentemente e faz com que nos mantenhamos em pé. Uma energia e inteligência pu-lahantes que nos mantém inteiros. São inteligências que estão atuando constantemente na natureza e em nós. Está numa planta e a faz crescer em direção ao Sol. Está na expansão contínua do Sol. Está nas menores partículas a girar e criar em sua dança constante.
O que nos mantém enquanto sociedade, grupo que coabita uma região, convive e se relaciona entre si, são as relações. Não vivemos sozinhos, nascemos numa sociedade que nos abraça desde que nascemos. A forma como nascemos já é um dado social, algo que encontramos pronto e ganhamos de presente. Essa sociedade nos abraça, nos passa valores e ideias que ao longo do tempo introjetamos, inicialmente a partir dessa micro-sociedade que é a nossa família. As próprias relações são o que sustenta essa sociedade enquanto tal. E nela os valores compartilhados Quando falo de valores me refiro a uma ética social mínima, de respeito uns aos outros, como não violência e o não roubar, e me refiro também aos valores enquanto uma língua, crenças compartilhadas, ideias sobre o mundo. Sem estes valores, não haveria a mínima comunicação, a ordem básica possível para a convivência e crescimento mútuos. Esse, dizemos, é o dharma social. É o que sustenta a sociedade como tal e os homens inseridos nela.
Se pensarmos com cuidado, perceberemos que somos totalmente sustentados por essa sociedade em que nascemos e que por grande parte de nossas vidas somos praticamente receptores. O ser humano é, dentre todos os animais, o que permanece indefeso e dependente por mais tempo. Mas em toda sociedade, em algum momento da vida, há um rito que marca a passagem da vida de criança para a adulta. Um momento que marca e transforma o indivíduo de consumidor em colaborador. Na nossa sociedade moderna, é o momento em que precisamos escolher uma profissão. E a lógica que é usada para essa escolha geralmente não é a colaboração, ainda permanece o pensamento de consumo. Seguimos usando o raciocínio predominante de quanto vou ganhar, seja em status social ou financeiro. Claro, o ganho financeiro é fundamental à sobrevivência, mas apenas esse pensamento oblitera outras questões fundamentais a serem levadas em conta. Todos nós somos colaboradores nessa sociedade. Todos nós representamos participamos de relações fundamentais para a sustentação da coletividade. O papel de mãe, de filha, de pai, de irmã, são papeis fundamentais que demandam a nossa atenção e cuidado pois constroem coletivamente a nossa existência.
O papel de profissional é mais um deles. Um papel que hoje podemos escolher dentre uma gama de opções. E o pensamento poderia ser, o que tenho de potencial em mim, o que tenho de habilidade que posso oferecer? Cada pessoa tem uma história de vida particular que carrega as suas dores e as suas belezas. As nossas próprias dores, se vistas com cuidado, podem ser transformadas em potencial construtivo para ajudar o outro. Todo mundo tem uma jóia e riquezas criativas para oferecer para o mundo. Se for possível associar essa riqueza a um papel profissional, ótimo, ganha-se o prazer de se trabalhar com o que se ama e além disso de ter o sustento financeiro diário. Contudo, mesmo que essa expressão não seja possível no âmbito profissional, pode ser viável em outros âmbitos da vida, como num trabalho voluntário, por exemplo.
Há uma grande pressão social para se seguir um caminho específico, profissões determinadas que dão mais dinheiro e status social, mas que frequentemente ofuscam e desperdiçam talentos e a própria felicidade do indivíduo. O valor atribuído a algumas profissões tem o argumento de utilidade como defesa, porém, se lançarmos o mínimo questionamento sobre eles, vemos que não se sustentam. Vários trabalhos manuais, técnicos, são desvalorizados apesar de serem fundamentais no nosso dia a dia. O trabalho de médico, por sua vez, é supervalorizado, assim como o trabalho do advogado. Enquanto do outro lado da balança temos profissões tão importante quanto essas que não são reconhecidas, como a dos professores. Quantas vidas um professor não salva, quantos crimes um professor não evita? Além dos músicos, dos atores, todos os que trabalham com arte. Esquecemos que eles ajudam a re-significar vidas, criam beleza, deleite e tem um papel fundamental na sociedade, e muitas vezes não têm o reconhecimento merecido, como se não fosse um trabalho importante, ou mesmo como se não fosse um trabalho. Algumas ocupações sequer são pensadas como um dharma, como fundamental. Uma mãe, que se dedica “apenas” a cuidar dos filhos, ela não trabalha? Não há importância social nessa ocupação? Esquecemos que é um ato político e de engajamento educar uma criança. É um papel fundamental para o futuro de toda uma sociedade.
Para realmente escolhermos um ofício e não ser levado a escolher, deveríamos nos pensar como colaboradores. Uma profissão é uma doação à sociedade, um oferecimento e uma troca. Para isso, é importante ter uma visão das relações como interdependentes e do reconhecimento de nossa participação dentro da tecitura social. A minha ação não vem do nada e vai para o vazio. Vem de algo em mim que faz parte da minha história pessoal, construída socialmente e que posso oferecer de volta à coletividade, dentro da qual terá uma vida criativa. Ter consciência social do que se faz já nos ajuda a fazer de uma forma mais plena, ou de decidir não fazer mais, por não ver sentido naquele trabalho ou por não querer colaborar daquela maneira. Quando, além da consciência social, é feito a partir de uma qualidade que se tem a oferecer, da vida pu-lahante em si mesmo, de uma habilidade intrínseca do indivíduo, isso é beleza expressiva, é doação de vida. O trabalho certamente será criativo e feito de maneira mais íntegra.
O processo de escolha de escolha de uma profissão pode não ser livre de desconforto, pois precisamos, para escolher, aprender a nos desprender de diversas ideias impostas. Seja para dizer “sim” a elas de maneira consciente, ou para dizer “não”. Mas o “não” certamente não será livre de críticas, e precisaremos sustentar a autoestima e a confiança para questionar até mesmo as formas de trabalho que a sociedade nos oferece como escolha. Para, inclusive, termos a liberdade de criar novas formas de trabalho e de colaboração. Em muitos casos o próprio questionamento já é um papel social importante. A desobediência civil, o consumo consciente, o trabalho colaborativo cumprem um papel essencial na transformação da sociedade. E nesse engajamento, vejo a arte e a sensibilidade do artista como essenciais para nos mostrar novos caminhos pessoais e sociais a seguir. Precisamos vislumbrar novos rumos e ter a coragem de ser aquele a dar os primeiros passos. Mesmo que a sensação inicial seja de pisar no vazio, os próprios passos criarão os novos caminhos.
Há uma coragem, uma força que nasce do coração quando reconhecemos a vida em sua plenitude e a existência diária e nossas ações como atos artísticos e rituais. É um processo que inclui uma leitura de si mesmo, uma leitura e interpretação do mundo e o reconhecimento de que a força da vida em mim se amplia em cada ação doadora que ofereço ao mundo. O mundo e nós não somos algo dado, somos constantemente construídos um pelo outro numa relação intrínseca e fundamental. Saiba, em cada escolha há uma pincelada, uma escrita e uma obra, e em sua vida um legado e uma força de vida que é deixada para toda a sociedade.
Com essa consciência, podemos fazer de nossas vidas algo que vale à pena ser vivido, pois ela mesma se torna mais intensa e nossos corações mais cheios de sentido, de vida, de criatividade e de arte. As ações grandiosas são aquelas mais cotidianas, em contato íntimo com o outro e realizadas com autenticidade e com verdade.
Tales Nunes
Floripa, 15 de setembro de 2014