por Tales Nunes
A cura é um caminho. Toda cura é um caminho de consciência. Há diversas curas na vida, nos curamos de diversas coisas constantemente, de situações, de perdas, de ausências, inclusive de doenças. E continuaremos nos curando, pois curar-se é libertar-se de algo que nos faz sofrer, por não entendermos, não integrarmos, não assimilarmos uma situação, um acontecimento nessa dinâmica constante que é a vida.
A cura fundamental da vida é libertar-se da principal doença que acomete o ser humano e o faz sofrer: distanciar-se de seu próprio coração. É a distância do amor que causa a dor, a raiva, o medo, a angústia, todas as emoções que agem como venenos não apenas no corpo, mas na sociedade como um todo e que findam por contaminar também a natureza.
A cura principal é a cura da ignorância em relação à sensação de separação. O mundo é uma extensão de nós e nós do mundo. O mundo é uno. Mas o vemos como separado, como distante, e quanto mais distante vemos o mundo maior a nossa projeção sobre ele. Então ele se torna o lugar de onde devemos tirar algo para preencher a insatisfação, pois não encontramos um conforto que seja em nosso ser isolado, ou se torna um lugar que nos oprime e nos causa todos os problemas que não conseguimos resolver em nós mesmos.
Por isso convivemos com uma ansiedade e um movimento neurótico de querer transformar o mundo à nossa maneira, para preencher as nossas necessidades ultrapessoais de acúmulo e prazer momentâneo. Nesse olhar, a natureza se torna apenas um bem a ser usado. Um produto a ser consumido. A fórmula matemática não se fecha, porque as riquezas que usamos da natureza são finitas, mas os nossos desejos nunca findam. E o que vemos é a transformação desmedida do meio em que vivemos, onde nós mesmos e todos os outros seres sofremos as consequências.
Cercamo-nos cada vez mais de máquinas e de concreto. Não importa se externalizamos o que nos tornamos ou nos tornamos o que construímos. Transformamo-nos em seres máquinas, que pouco refletem, pouco se reconhecem e muito reproduzem neuroticamente. Seres enrijecidos, presos em pensamentos de concreto, presos a uma visão de mundo quadrada e linear. Excluímos e tiramos o direito de viver não apenas de várias espécies de animais e de plantas, mas de povos que pensam, sentem e vivem diferentes de nós. Por não produzirem, se tornam um empecilho ao consumo, ao “progresso”.
Como falar em cura hoje em dia sem pensar nessa cura, na cura dessa visão que fere a memória ancestral da terra, adoecendo-a, contamina plantas e animais, seres que são parte de nossa família, e finda por retornar a nós mesmos. Sentimos em nossos corpos. Não falo apenas dos químicos que ingerimos, mas das exigências que introjetamos sem perceber. Exigências que colocamos sobre nós mesmos dia-a-dia. O controle já foi externo, a coerção do comportamento já foi mais policial e espacial, hoje é mais psicológica. Introjetamos a coerção e na forma de uma cobrança pelo sucesso como produtividade, sucesso como dinheiro, sucesso como uma carreira empresarial, sucesso como acúmulo de bens, sucesso como saúde perfeita, sucesso como “empreendedorismo”.
E essa ideia de sucesso não traz a felicidade que projetamos nela, pois não nos ajuda a nos aproximarmos de nós mesmos. Na maioria das vezes, inclusive, consome o nosso tempo, os nossos corpos, as nossas mentes e em muitos casos, a depender da pressão, consome a sanidade. Afasta-nos do tempo livre, do contato com as pessoas e o pior de tudo, tem uma força incrível de nos afastar dos valores humanos, se não estivermos constantemente em alerta.
A cura que precisamos é um resgate de um caminho que tenha o coração como centro. E a partir desse centro possa se irradiar em direção a mudanças coletivas. Uma microfísica da transformação que tem início nesse pu-lahar essencial que nós somos. Uma revolução da delicadeza. Não há força maior que precisamos hoje em dia senão a delicadeza. Uma visão de mundo em que os símbolos sejam metáforas para a integração de nossas emoções destrutivas, para que aprendamos a projetar menos, a amadurecer mais e possamos repousar na paz do nosso coração. Apenas descansando no próprio coração, descobrindo nele a beleza do Universo inteiro, somos capazes de ter uma apreciação de uma integração real com a vida e com os outros.
A cura da ignorância é o reconhecimento da nossa integração com toda a existência e da reverência e respeito que nascem a partir dela. A cura pela natureza é a cura pelo Amor. É a cura do coração solitário pelo cuidado da mãe. A Grande Mãe que nos acolhe desde que nascemos, que nos nutre, que nos faz crescer, que nos ensina os limites, e que dá na exata medida que oferecemos.
A mãe que está em tudo o que vemos e em nosso corpo. Que não é diferente de nós e que estende a mão e conforta. Que se manifesta no olhar do outro como reconhecimento de diferença e de unidade, numa fala que chega para nos ensinar algo, que aparece numa pessoa que não gostamos para nos evidenciar emoções arraigadas em nós. Essas próprias emoções são vistas como ela, e reverenciadas e integradas como parte de nossa história. Elas são vistas e reconhecidas como derivações do amor magoado. Elas estão sempre a apontar para o amor, se tivermos olhos para ver e ouvidos para interpretar. E se não fugirmos.
Na cura é preciso coragem para não fugir, para não tentar se esconder de si mesmo, para não se distanciar. Curar-se como uma arte constante de quem caminha, é a arte de permanecer e de transmutar-se nessa permanência. A dificuldade de permanecer é ter que lidar com a dor, a sua grande benção é reconhecer o Amor. Toda cura termina sempre no lugar que mais ansiamos chegar, no lugar que muitas vezes fugimos para não sofrer. Lugar no qual cedo ou tarde reconhecemos que verdadeiramente nunca saímos e percebemos que toda fuga foi vã.
Esse lugar é o centro que tanto buscamos, aquilo que tudo permeia, que está presente em tudo e em todos. Esse lugar é coração.
Tales Nunes
*foto de Tales Nunes