Leucipo e seu aluno, Demócrito, achavam que existiam no universo partículas minúsculas, eternas e indivisíveis que se combinavam umas com as outras para formar tudo o que materialmente era visto. Essas partículas minúsculas foram chamadas de átomos. Átomo etimologicamente vem do grego e quer dizer, “que não pode ser cortado”, “indivisível”.
Essa idéia foi defendida por muito tempo, desde a Grécia, onde teve origem, por volta de 400 a.C., até Europa de 1800 d.C., quando descobriram, não mais por especulações filosóficas mas por experimentos científicos, que o átomo, que pensavam ser indivisível, era formado por partículas ainda menores: elétrons, prótons e neutros. Assim, reduziram os elétrons ao posto de menores partículas do universo. Posteriormente porém, a física quântica entraria por um mundo ainda mais fracionado, menor e mais volúvel, a ponto de descobrirem partículas menores que os elétrons e que não obedecem mais às leis da matéria. Ou seja, elas pertencem a um mundo mais sutil que a matéria, ao campo não totalmente lógico da energia.
Trago essa discussão da física apenas para fazermos uma analogia entre essa idéia e a noção que temos sobre nós mesmos. Ou seja, a noção de “eu”. Muitos de nós acreditamos ser uma personalidade. E assim dizemos: “eu sou assim”, “ninguém pode me mudar”, “eu sempre fui assim”. Quando pensamos dessa maneira sobre nós mesmos, estamos reduzindo a nossa personalidade, o nosso “eu”, a algo estático e indivisível, semelhante à idéia que os filósofos gregos e físicos clássicos tinham do átomo. Não é a toa que temos a palavra “indivíduo” para representar a noção que temos de nós mesmos. Esta deriva do latim e tem o mesmo sentido de “átomo”, que quer dizer “indivisível”. Essa idéia de “eu”, coloca-nos numa posição estática e absoluta, numa espécie de congelamento do nosso comportamento. “Eu nasci de uma determinada maneira, uma personalidade foi impressa em mim e assim permanecerei durante toda a vida, independente da situação, do tempo e do lugar”.
Essa noção, essa idéia que temos de nós mesmos traz sofrimento e frustração, porque não condiz com a realidade, que é relativa e mutável. Se não possuirmos a flexibilidade necessária para nos adaptarmos a esse mundo em constante movimento, sofremos.
O que pensamos ser estável e perene em nós e damos o nome de personalidade, pela origem do termo, pode ser vista de uma maneira completamente diferente. Podemos muda o nosso ponto de vista. A palavra “personalidade” deriva do latim “persona” que quer dizer “máscara”, “figura”, “papel representado por um ator”. Como nos dizem os ensinamentos de Ved nta, estamos sempre a representar papéis na vida, papel de pai, de filho, de irmão, de mãe. Essa idéia nos sugere uma visão mais flexível de quem somos nós, semelhante à visão quântica do mundo, no qual o Universo é um campo de possibilidades. Tendo essa consciência, dentro dos papéis que eu represento, sempre terei a opção de representar de uma maneira diferente, se assim for desejado. Assim posso me adequar melhor à realidade de acordo com a situação, o tempo e o lugar.
É importante frisar, porém, que essa idéia de representação é diferente de dissimulação. Representar não quer dizer ser dissimulado diante das pessoas para obter aceitação ou ser hipócrita de alguma maneira para tirar vantagens em relação aos outros. Representar é apresentar-se como, através de uma maneira de falar, de agir e de se colocar corporalmente no mundo, por meio de gestos e expressões. Mas esse representar está baseado em algo mais, semelhante ao que o ator faz no teatro.
O ator, quando em cima do palco, tem a sua margem de liberdade para representar, mas existe um relacionamento básico, uma linha mestra que ele deve se basear para guiar a sua representação. Essa linha é o roteiro. O ator só ganha liberdade plena quando o roteiro está de tal maneira introjetado que ele tem a sensação de não mais representar e simplesmente atuar espontaneamente. No entanto, o roteiro está ali por trás das suas ações, das suas falas e dos seus gestos.
Essa linha mestra, esse relacionamento básico, na vida real, é o dharma, o dever, a verdade. Esse relacionamento básico que nos guia é o que Vedanta chama de “o papel do devoto”, o papel que nos conecta com algo que está além de todos esses papéis que representamos e que pode servir, num primeiro momento, como guia para as nossas ações dentro desses papéis.
Quando representamos os nossos papéis na vida, com as pessoas, centrados nesse relacionamento que nos liga ao todo, à verdade e aos valores absolutos, estamos dentro de um processo de reflexão e ponderação entre os valores absolutos, colocados dentro de situações relativas. Dentro dessa reflexão, tentamos levar em consideração a situação na qual estamos inseridos, o tempo e o lugar, incluindo as pessoas ao nosso redor, cheias de expectativas e ao mesmo tempo representando os seus papéis em relação a nós mesmos. Quando, porém, como o ator que introjeta o roteiro, introjetamos esses valores em nossos corações, temos a sensação de não mais representar, de simplesmente atuar espontaneamente no mundo. Mas os valores e o nosso relacionamento básico com o todo estão ali presentes em nossas ações, falas e gestos.
A essas pessoas que refletem os valores universais e o seu relacionamento com o Todo no seu estar no mundo, damos o nome de sábios. Essas pessoas ensinam-nos que somos unos, perenes e indivisíveis, apesar de múltiplos, finitos e divisíveis.