por Tales Nunes
Autoridade não quer dizer autoritarismo. Muitas vezes, inclusive, reconhecer a autoridade é um grande meio de não se tornar autoritário.
Em todo campo do saber, em toda matéria que a pessoa se interesse em estudar, provavelmente alguém já se enveredou por essa aventura. Isso não quer dizer que não hajam coisas a serem desvendadas ou criadas, apenas que as referências nos enriquecem. A essas referências dou o nome aqui de “autoridades”.
A minha orientadora de mestrado é uma autoridade, uma referência no assunto que estudei, por isso a escolhi como orientadora e fiquei muito honrado quando ela me aceitou como orientando. Fui monitor em uma das matérias que ela ensinava na graduação, Antropologia da Religião. Tanto como professora no mestrado, na graduação e como orientadora, tive a oportunidade de ver o quanto ela era democrática com o conhecimento. Uma pessoa de uma generosidade imensa com o saber, sempre promovendo a abertura de debates. Ser autoridade num assunto não quer dizer que a pessoa seja autoritária.
Faz parte do autoritarismo no saber, achar-se dono do conhecimento, detentor de todo o saber que se tem. Conhecimento não é para ser detido, tampouco para ser contido, conhecimento é para circular e para ser honrado. Nenhum conhecimento é próprio. Não atribuir ou honrar as referências do saber que se tem é de uma arrogância imensa. A arrogância do autodidatismo.
Enquanto penso que sou o dono de todo o saber que me compõe, o orgulho me guia. Quando nego as referências que me ajudaram a chegar neste lugar que estou, facilmente me torno autoritário e arrogante. Esse é um dos autoritarismos que evidenciamos hoje. O autoritarismo da falta da escuta, da opinião rápida, a ditadura do grito, do imediatismo, a impaciência com o tempo de maturação, com a dedicação e a ideia de que liberdade é negar todas as referências, toda a história do saber. É uma confusão imensa em relação ao que são as tradições de conhecimento, seja a tradição do Yoga, da academia ou a tradição dos povos indígenas.
Mesmo que eu aprenda com livros, estou aprendendo com pessoas. Mesmo que eu aprenda com a Natureza, estou aprendendo com o outro. No olhar dos saberes tradicionais posso reverenciar um animal ou uma planta como professora, tanto quanto honro uma pessoa. Em ambos os casos, o fundamento do saber é a amizade.
Tanto no Yoga quanto na academia, muitas das relações de professor-aluno em que estive, se tornaram relações de amizade. Filosofia quer dizer amizade, amor ao conhecimento. Filósofo é aquele que ama o conhecimento, que é amigo do saber. Não é diferente do yogi. O yogi ama o saber, porque o saber enriquece e é o único antídoto para a ignorância sobre qualquer assunto. O antídoto, porém, pode se tornar o veneno, o que nos liberta da ignorância pode ser aquilo que nos mantém na arrogância. O problema não está no conhecimento, mas na atitude perante ele. Por isso, faz parte do Yoga honrar as professoras e professores. Ao reverenciá-los, reverenciamos o saber, a liberdade, o amor e a amizade. Porque o conhecimento nunca está pairando por aí, o conhecimento está na Natureza e nas pessoas. Não há como não amar uma pessoa ou uma entidade da Natureza que te ajudou a sentir e a entender algo significativo na sua vida.
Honrar o conhecimento é também honrar pessoas através das quais esse conhecimento chegou até você. Essas referências dedicaram tempo de suas vidas a estudar, a meditar, a refletir, a escrever, a pensar, a silenciar, a olhar. A pessoa não se torna uma “autoridade”, uma referência num assunto da noite para o dia, tampouco se autointitula autoridade. É um processo. Sobretudo é um caminho de amor ao ser, ao desvendar, ao saber.
Dentro da própria academia há uma hierarquia que requer tempo, dedicação e estudo para se aprofundar. Graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado. Dentro do xamanismo yanomami, que é um saber muito profundo, ali também está presente a relação de reverência. O xamã Davi Kopenawa, em seu livro “A queda do céu”, nos conta como ele se tornou um xamã. Não aconteceu do noite para o dia, fez parte de um treinamento árduo que ele aprendeu com outras pessoas, que assim aprenderam com outras, ou seja, com toda essa riqueza que é o conhecimento dos yanomami. É uma história, uma tradição que fez de Davi um xamã. É um saber. Ele é um xamã único, ainda assim, pertence a algo maior. (Da mesma forma que citei o xamanismo, poderia falar da capoeira)
A reverência nasce do reconhecimento de algo maior do que eu, que me envolve e que ao mesmo tempo ajudo a construir. Aí está o amor, aí está o conhecimento, antigo, ancestral e ao mesmo tempo vivo. Ter reverência não é idolatria, não é concordar com tudo, é muito mais profundo. Eu não concordo com tudo o que a minha professora de mestrado dizia, tampouco concordo com tudo o que escutei de meus professores de Yoga, ainda assim, tenho reverência profunda e amor por tudo o que aprendi e aprendo com eles. Esse aprendizado só foi possível porque houve escuta, porque houve disponibilidade, porque há amizade.
Rebeldia no conhecimento é escuta profunda, do outro e da Natureza. Não parte inicialmente de uma negação. A negação como princípio nos deixa surdos. Rebeldia no conhecimento parte de uma afirmação total, que é a abertura da escuta. Afirmação que permite entender, que permite concordar, que permite negar, integrando, que permite criar, reverenciando.
Essa é a beleza do amor ao conhecimento, sem se aumentar ou se diminuir, honrar as referências dos saberes que chegaram até você. E eventualmente se tornar uma referência, uma autoridade, sem, jamais, ser autoritário.
Tales Nunes