Existe um discurso que circula no meio do Yoga atualmente, que muitas vezes é aceito como verdade porque é gritado como verdade. Vivemos um período que o grito e o radicalismo ganham adeptos com mais facilidade do que o argumento. O único antídoto contra acreditar em algo que é berrado mas vazio, é a reflexão.
Tenho escutado repetidamente a frase: “O Yoga Sutra é um texto brahmanico e elitista”. E em tempos como os nossos, essa frase é um insulto. Pois logo segue a causalidade desse pensamento associando esse texto e as pessoas que falam sobre ele em seus cursos à extrema direita ou mesmo ao fascismo. A causalidade fica, então, assim:
Yoga Sutra – Brahmanico – elitista – direita – fundamentalista – fascista.
É isso o que esse grito quer fazer as pessoas associarem. Eu mesmo certa vez recebi uma crítica pública no Instagram de que não deveria ensinar esse texto numa Formação de Yoga. O mais incrível é que essa crítica, que chegou como grito, veio de uma pessoa que se diz libertária. A resposta foi, “o curso de Formação é meu, eu ensino o texto que eu decidir ensinar”. Se o Yoga Sutra contivesse algo que me levasse a pensar que é um texto preconceituoso ou excludente, não ensinaria.
Vou ressaltar três argumentos que escutei serem usados para chamar o Yoga Sutra de um texto elitista.
1. Patanjali era um Brahmane
Julgar que um escritor, um poeta, um teórico ou filósofo escrevem apenas pela e para a classe social que nasceu é uma redução perversa. Poucos filósofos e filósofas ocidentais seriam lidos diante de um pré-julgamento desses. Incluindo os filósofos e pensadores franceses e ingleses que são usados pelas pessoas que taxam o Yoga Sutra de um texto elitista.
A grande questão é que ao chamar Patanjali de Brahmane, muitos acadêmicos querem empurrá-lo para o campo religioso. Ao fazerem, destituem qualquer conteúdo filosófico ou mesmo psicológico desse texto. Aplicam sobre o texto a atitude colonialista que acusam estar no próprio texto. E sequer se dão conta desse paradoxo.
Essa não é uma atitude incomum dentro de muitos estudos acadêmicos de textos orientais. A divisão entre religião, filosofia e literatura é característica do ocidente. Então, ao se debruçarem sobre os textos de Yoga, fatiam-no de acordo com as limitações de sua própria epistemologia. Tanto que Octávio Paz, um profundo estudioso tanto do budismo quanto de textos indianos, diz que o budismo e o Sanathana Dharma – que abrange uma miríade de práticas inclusive o Yoga – são religiões ateístas.
Essa afirmação dá nó na cabeça de muitas pessoas. As “especulações filosóficas” do Yoga sobre o ser humano e sobre o Todo estão presentes tanto na poesia popular, oral ou escrita, em sânscrito ou ou nas diversas línguas que constituem a complexidade da cultura indiana. Em todos esses âmbitos, a poesia, o debate, a especulação filosófica, o conhecimento sobre si e sobre o Todo se misturam . Não quer dizer que o sagrado não seja passível de debate, como muitos acreditam, pelo contrário, o debate é uma prática comum tanto no budismo quanto no Yoga.
2. Patanjali é um moralista por propor uma ética
Assim como acontece no budismo, Patanjali sugere um respeito por todas as formas de Vida. Isso fica evidente num sutra do segundo capítulo, quando o autor fala sobre os yamas. Ele menciona a ética como uma baliza da nossa relação com a Vida.
Ele diz: Os yamas são um compromisso com todos os seres em todos o lugares. Ou seja, a não violência, o respeito do não roubo são um comprometimento com todos os seres. O texto sugere uma baliza ética para as nossas relações com toda a vida ao nosso redor.
Chamar Patanjali de moralista por falar de ética é o mesmo que criticar o movimento indígena no Brasil por pedir respeito e direito à Terra. O que eles pedem é ética e respeito, humanidade. Mas realmente vivemos numa época que até mesmo a ética e o humanismo são atacados em nome de uma pretensa liberdade.
Mas Patanjali vivia numa sociedade estratificada pelas castas, por isso não deveríamos ler esse texto. Então não deveríamos ler, tampouco dar crédito a toda a filosofia grega, romana, a grande parte da poesia chinesa e japonesa antigas. Um texto não se limita aos limites da sua época. E essa é a beleza da literatura. A literatura fala para além do seu tempo. Por isso continuamos estudando os textos de Yoga, inclusive o Yoga Sutra.
3. Patanjali é tirano por ser um sistematizador
Patanjali é um fundamentalista ou um tirano do Yoga por propor uma definição e juntar ideias sobre o Yoga em seu texto? Há algo nesse texto de fundamentalista a ponto de não devermos falar sobre ele num curso de Formação?
A reposta é não. Patanjali é um grande narrador, ele faz uma crônica do Yoga. É isso.
A palavra Yoga aparece em dois momentos do texto. É mencionada logo no início, quando ele sugere uma definição do Yoga. Esse sutra é muito mais uma interpretação cognitiva do que uma definição fechada, inclusive é uma definição super lacônica do que é Yoga. Em resumo, ele diz: “Yoga é a desidentificação (ou o controle, dependendo da tradução) em relação aos movimentos da mente” – há outras traduções.
Ele usa o termo citta para definir a “mente” ou antahkarana, o pensar e todas as suas funções, como é usado em diversos outros textos de Yoga. Ele fala de uma desidentificação ou controle da mente para apontar para algo mais amplo do que o pensamento, uma abertura prévia ao pensamento, uma pura presença, que ele vai dizer, no próximo sutra, que é a natureza do sujeito. A pura presença está para o pensar, assim como o silêncio está para o som. Pronto, é isso o que ele diz sobre o Yoga. Basicamente ele fala da percepção do silêncio como fundamento da existência. O budismo diz que o fundamento é a vacuidade, para Patanjali, é uma pura presença. Ninguém diz que o budismo tibetano ou o zen budismo são fundamentalistas ou de direita por essa definição. Sugiro a leitura do meu artigo chamado “Tantra e anarquismo”. Nele faço uma relação entre a ideia de “vacuidade” ou de “pura presença” e o anarquismo enquanto uma atuação social de deslocamento constante.
Mais adiante então, ele propõe uma prática: os oito membros do Yoga. É aí que dizem que ele segrega ao sistematizar. Porém, essa é uma forma antiga de narrar as práticas de Yoga que aconteciam na época. Patanjali não foi o primeiro. Isso está presente muito antes do Yoga Sutra na Maitri Upanishad com o nome de shadanga, uma prática de seis membros: pranayama, pratyahara, dhyana, dharana, tarka e samadhi.
Ainda assim, você poderia pensar, mas as Upanishads são textos Brahmanicos, por isso são elitistas também. Bom, as mesmas pessoas que defendem que Patanjali é fundamentalista, dizem que os textos de Hatha Yoga, por sua influencia tântrica, são revolucionários e subversivos. Porém, na Gheranda Samhita, temos a mesma sugestão tanto de uma definição do que é Hatha Yoga, quanto de uma sistematização do que é essa prática. Isso aparece com o nome de sapta sadhana, a prática de sete partes. Que consiste em: shatkarmas, asanas, mudrās, pratyahara, pranayamas, dhyana e samadhi. Quer dizer que, por isso, então, Gheranda, que escreveu esse texto, foi um reacionário?!
Não, o que ele fez foi narrar o que ele e um determinado grupo de yogis faziam. Que bom que o fez, assim podemos usufruir de determinadas práticas até hoje. Por isso esses autores são “reverenciados”. Reverência não é uma fé cega, é uma forma de agradecimento, é um sentimento. Eu, por exemplo, tenho uma profunda reverência pelo Mar.
Conclusão
Estudando filosofia, vemos que vários filósofos definiram o que é a filosofia. O próprio Deleuze define o que é a filosofia. Nem por isso Deleuze restringiu o que ela é. Ao defini-la, ele a alarga. O que Deleuze define como filosofia é diferente do que Merleau-Ponty define como filosofia. E isso apenas enriquece esse campo de estudo.
Ao definir o Yoga ou sistematizá-lo, Patanjali restringe o Yoga apenas em mentes já restritas.
Vejo esse julgamento do Yoga Sutra interpretado praticamente como um texto de extrema-direita ser gritado por aí mais para garantir uma reserva de mercado do que porque realmente isso está presente no texto. Querer associar o Yoga Sutra ao que há de pior no movimento de extrema direita hoje no Brasil é um anacronismo sem tamanho que só gera mais confusão sobre esse que é um belíssimo texto de Yoga.
Há muitos outros textos de Yoga. Não é preciso estudar o Yoga Sutra como o único texto do Yoga, inclusive você pode estudar e sentir o Yoga pela poesia de poetas como Mirabai, Lal Ded, Vidyapati, Tagore, entre outros. Além de ser um profundo equívoco epistemológico e cognitivo, negar a beleza filosófica e psicológica desse texto com argumentos tão superficiais , não é pura infantilidade, para mim, é também briga por reserva de mercado e por visibilidade.
Afinal, o grito e a agressão estão na moda nesses dias que vivemos.
(Tales Nunes)