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Yoga, Poesia, cursos, reflexões, pensamentos

Tantra e Anarquismo

por Tales Nunes

A visão do Tantra sobre o eu é contundente. Tão contundente quanto o olhar do anarquismo sobre o ser humano. No Tantra, o eu é uma pura presença, sem forma. Não tendo forma, é todas as formas. Em alguns textos vemos aparecer o eu como um vazio, como vacuidade. Mais uma vez, o eu não tem uma forma definida, mas é aquilo que acolhe, permeia e dá origem a todas as formas.

No anarquismo, há uma aposta profunda no ser humano, de que este não precisa de poder externo algum para se regular. A autonomia e a capacidade de discernimento são o cerne do pensamento anarquista. Muitos pensam que o anarquismo é desordem, pelo contrário, a aposta do anarquismo é na capacidade humana de discernir, de cooperar e de estabelecer vínculos a partir da liberdade.

O Tantra, portanto, nos mostra que o eu não é fixo, que podemos passear por ideias, por momentos, interagindo, encontrando, permanecendo e deixando passar, mantendo-nos livres. A essência do eu, para o Tantra é essa liberdade. Não é uma liberdade que nos mantém acima das situações, mas uma liberdade que nos permite mergulhar no momento e nos encontros de maneira apreciativa e ao mesmo tempo transcendente. Não conseguimos transcender algo que não aceitamos. Aceitar é mergulhar ativamente no que se vive.

O eu, para o Tantra, é universal, o vazio ou o pleno, mas a experiência vivida a partir dessa vacuidade é singular e deve ser vivida plenamente. Viver plenamente é não precisar seguir, tampouco ter o desejo de guiar. O grande mestre é a Vida. Uma árvore pode ser um mestre, o Mar é um mestre, um amigo é um mestre, um olhar é um mestre, um sonho é um mestre. 

Não precisamos de uma bengala para enxergar, precisamos de conhecimento. E isso achamos em livros, na vida, em pessoas ou no silêncio. O conhecimento é nômade, o aprendizado deve ser sempre nômade. Para se manter nesse nomadismo, que é o caminho genuíno de aprendizado, é preciso autonomia. Ter firmeza, mesmo que oscilante, nos próprios pés.

Em nossa trajetória de conhecimento e de aprendizado, estabelecemos vínculos, o conhecimento é relacional, mesmo o conhecimento sobre o vazio nos chega através do relativo. Mas vínculo é diferente de transmissão de responsabilidade. Transferir a responsabilidade de nossa liberdade, discernimento e bom senso para outra pessoa, é abrir mão de quem somos essencialmente.

Em todo caminho de conhecimento, o que vem primeiro não é uma tradição ou um mestre, mais importante é o conhecimento. Manter-se fiel a uma tradição ou mestre quando ela mesma abriu mão do conhecimento é deixar de ser fiel a si mesmo.

A visão de eu do Tantra nos ensina que nossa personalidade é cambiante, nômade, como todas as forças de manifestação do Universo. Nada pode nos conservar inalterados na vida em relação ao corpo, a mente, às emoções. A vacuidade cria formas infinitas, nós somos um agregado momentâneo dessas formas. Mergulhar em cada instante a partir desse vazio é único, belo e muitas vezes assustador. Esse é o preço da liberdade, ser nômade, saber que todas as forças migram. Nada deve ferir a sua liberdade, assentada sobre a sua capacidade de discernir, de escolher a direção a seguir. Muitas vezes queremos seguir numa direção e há forças naturais que não nos permitem. Mas nunca, nunca uma força humana deve impedir outra força humana de caminhar em busca de sua inteireza pessoal, em busca de sua ética e estética de viver.

Quando uma força humana, por egoísmo, carência, ganância, tenta nos coagir a caminhar para onde não queremos, ou permanecer onde não desejamos ficar, isso se chama poder. Há muitas formas do poder operar. A coerção pode ser política, psíquica, emocional ou física.

O Yoga, como uma prática tântrica, assim como o anarquismo, em sua essência, nunca devem estar do lado do poder, mas à sua margem, questionando-o, desarticulando-o, combatendo-o dentro e fora da pessoa. O Tantra é uma prática e um conhecimento que desconstrói o poder em sua raiz, na pessoa. Ao desconstruir o poder em nós, nos dá força para combater o poder externamente.

As nossas armas são a descoberta de um eu livre de formas, que nos permite passear, nômades, por todas as formas, e o discernimento, sobretudo para ler onde está o poder, onde ele tende a se multiplicar e as formas com que ele tenta nos coagir e capturar o nosso desejo, fisgando-nos por nossas carências, roubando nossa possibilidade de escolha.

O poder está nas instituições de manutenção do capitalismo, nas ideologias de consumo, na exploração do trabalho, nos ideiais de eu, de corpo, de vida. O poder pode estar na fala de “mestres”, em instituições religiosas ou na própria ideia de tradição.

Tales Nunes

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