Vedanta é um meio de conhecimento, um meio de conhecimento que revela o Sujeito que somos, livre de qualquer limitação e base para qualquer experiência. A compreensão verdadeira de Vedanta abre caminhos para possibilidades de relacionamentos interpessoais mais plenos e estreitos, como refletiremos brevemente a seguir.
Toda observação se dá a partir da relação sujeito-objeto. O sujeito é aquele que vê, enquanto o objeto aquele que é visto. O objeto visto se reflete na consciência, que é você. Ou seja, o objeto momentaneamente é você. O que se dá em qualquer observação é um encontro. Mas para realmente entrar em contato com o objeto é necessário momentaneamente abrir parcialmente de outros objetos, que são alguns pensamentos que podem desviar nossa atenção. Pensamentos em forma de reminiscência, de análise. E sentimentos, na forma de medo de contato, insegurança etc. Esses outros objetos podem nos afastar do contato com o objeto imediato que se encontra à nossa frente.
Para permitir que de fato o objeto reflita em você, em toda a sua grandeza e inteireza, é necessário abertura. É necessário uma mente contemplativa, uma mente que permite-se contemplar. Associo a possibilidade de contemplação ao olhar amoroso: “O olhar amoroso é a contemplação. É ter abertura para se lançar ao objeto e permitir-se ser tocado por ele. É perceber o objeto refletir em si e ao mesmo tempo ver-se refletido nele” (Tales Nunes).
Vedanta reflete sobre essa relação sujeito-objeto para revelar o sujeito. É um método de ensinamento que através das palavras leva o indivíduo à contemplação do Sujeito que observa, daquilo que é a base para qualquer experiência, mas parece estar oculto em cada uma delas, a Consciência. Ela está oculta porque é como se fosse uma porta, uma luz onde os objetos são iluminados, mas ela mesma não ilumina a si mesma. Vedanta tem o objetivo de revelar aquilo que revela, aquilo que ilumina.
O ser humano é uma abertura, um ser no mundo, aberto aos objetos e sentidos que o constitui. A natureza da Consciência em si é completude, eternidade. Mas não sabemos disso, pois não reconhecemos a Consciência, apenas os objetos iluminados por ela. Os objetos dançam à sua frente, a dança cósmica do Universo. Pessoas vão, vem, sentidos são criados, sentidos são perdidos, o corpo envelhece, a flor desabrocha e logo perde seu perfume e brilho etc. A presença consciente é uma constante mas não nos damos conta dessa realidade fundamental. Como a presença parece sempre ser a presença de algo, nos prendemos ao algo, acreditando que daí virá a nossa felicidade, quando, na verdade, é a presença a nossa fonte de felicidade. Os momentos de fato especiais nas nossas vidas são aqueles em que os objetos nos revelam a presença em nós e não no qual pensamos que a nossa presença depende dos objetos.
O objetivo de Vedanta é nos mostrar isso. Apontando para aquilo que somos, revela a nossa natureza fundamental de plenitude e eternidade, que é pura presença. E essa simples compreensão ou contemplação do sujeito que somos, promove uma mudança essencial. Pois descobrimos que somos a fonte de felicidade que projetamos incessantemente fora. E ao nos darmos conta desse fato, temos a oportunidade de, primeiro, projetar menos a nossa felicidade nos outros; segundo, como consequência, nos aproximar dos objetos com mais inteireza, ou seja, contemplar os objetos com mais inteireza. Porque quanto mais projeção, menos contato com o objeto em si, mais distância, insegurança e medo.
Ao mesmo tempo essa apreciação que Vedanta promove a enriquecedora possibilidade de nos relacionarmos com mais liberdade em relação a nós mesmos, ao sujeito relativo que sou, a minha personalidade. A partir dessa liberdade, a capacidade de encontrar o outro de fato. Pois “encontramos de fato as pessoas quanto paramos de tentar nos encontra nelas” (Tales Nunes). Vedanta, ao nos fazer descobrir a pessoa simples e em paz que somos abre a possibilidade de contatos genuínos e plenos com os outros. Para explicar tal processo, faço um paralelo entre ele e a visão do homem proposta pela fenomenologia e o contato interpessoal.
Assim, os relacionamentos interpessoais podem se tornar contatos especiais, se estivermos atentos ao momento e suas possibilidades. Todos os relacionamentos incitam a abertura de ambos os lados. Se nos permitimos uma relação genuína e autêntica, ambas as pessoas tem a possibilidade de se guiarem pelo que são no momento. Num contato genuíno há uma relação entre eu-tu, como sugerido por Buber, e não eu-isso. Um encontro que não está baseado na relação sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. Nessa relação entre sujeitos: “O “entre” constitui um espaço de trocas, algo que não pertence a nenhum dos participantes: pertence a ambos e os ultrapassa”. (Luczinski e Acona-Lopez).
Mas os contatos genuínos só são realmente possíveis quando a pessoa está centrada num ponto de “autonomia” e inteireza, que Vedanta revela. É a partir desse ponto que consegue contemplar a capacidade de realmente se abrir para o outro, perceber como este contato interfere no outro e ao mesmo tempo o recria. O indivíduo reconhece em si mesmo, e a partir dos relacionamentos, a capacidade de criar sentido e de constantemente se reinventar. Parece um paradoxo, mas a partir da aceitação de si mesmo, a visão estagnada e passiva de si é quebrada ao perceber que a personalidade é dinâmica e relacional. E a força para a mudança da personalidade – e de algumas dores – muitas vezes é descoberta quando o indivíduo reconhece algo maior do que ela.
Nesse sentido, vale ressaltar o que disse Nietzsche: “Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito de carga e respeitoso.” (Nietzsche, p. 38). Aprecio muito a sua metáfora das três transformações do espírito, poeticamente apresentada em “Assim falou Zaratustra”, para trazer à luz esse processo de entendimento, aproximando-o que refletimos aqui. Primeiro, como camelo, o espírito carrega tudo o que há de mais pesado. Não se reconhece ainda como produtor de sentido, como produtor de si mesmo, apenas absorve e carrega o que lhe é dado. Não enxerga a possibilidade de se inventar e de se reinventar. De camelo o espírito pode tornar-se leão. “No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor do seu próprio deserto.” (Nietzsche, p. 37). A transformação do camelo ao leão marca a passagem do dever ao querer. O leão ainda não cria novos valores, cria para si a liberdade de um “santo NÃO”. Ele começa a discernir e a escolher o que deseja carregar.
A terceira e última transformação é do leão para a criança: “A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, uma santa afirmação.” (Nietzsche, 38). Como criança, diz-se sim para o jogo da criação e reconhece-se como co-autor dela, como produtor de significados e como produtor de si mesmo em meio aos significados do mundo.
O que, em outras palavras, poeticamente diria:
“Encontre o seu silêncio.
Reconheça-o. Contemple-o.
Depois exploda-o.
Espalhe o seu ruído pelo mundo.
Assista as palavras se unirem umas às outras quimicamente,
formando novos sentidos, criando formas variadas
e impactando por onde passam.”
(Tales Nunes)
Referências Bibliográficas
LUCZINSKI e ANCONA-LOPEZ. A psicologia fenomenológica e a filosofia de Buber: o encontro na Clínica, 2010.
MORATO, Henriette Tognetti Penha. Fundamentos de Psicologia. Rio de Janeiro: Guanabara, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Sao Paulo: Martin Claret, 2011.
NUNES, B. Heideger e Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
NUNES, Tales. Brilho Súbito. Florianópolis: Ganapati, 2012.