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Não nos falta visão, falta-nos tato

por Tales Nunes

Fala-se de cegueira ao se referir à ignorância existencial em que vivemos atualmente. Fala-se de cegueira para ilustrar a nossa falta de contato com o outro, seja esse outro a pessoa ao lado, ou qualquer ser na natureza. Fala-se de cegueira para nomear a nossa sensação de separação em relação ao mundo. Fala-se de cegueira em alusão às nossas ações de exploração à natureza e a nossa visão torpe de que esta é um recurso que podemos explorar indefinidamente.

 Mas não, não é de cegueira que sofremos. Sofremos de uma insensibilidade crônica na pele. É uma falta de contato, uma falta de tato o que sofremos. Nós vivemos na era da imagem. Tudo é visto por todos. Aquele amigo mais distante, com o qual quase não falamos, tampouco temos qualquer contato, nós o vemos a cada vez que abrimos o facebook. As catástrofes do mundo, nós as vemos todos os dias na televisão, no facebook ou em qualquer outra tela disponível aos nossos olhos. Vemos tanto, sejam elas tão perto de nós, no nosso bairro ou do outro lado do mundo, que nos tornamos insensíveis. Parece não fazer tanta diferença entre uma e outra. Todas aparentam estar neste mesmo lugar, neste lugar puramente visual, virtual. Se não nos toca diretamente parece não existir de fato.

E são poucas, são poucas mesmo as coisas que talvez nos toquem a ponto de nos mobilizar a alguma ação, a alguma mudança. Não precisamos mais ver, ouvir, falar, precisamos sentir questionar e mudar. E para de fato sentir, é preciso ser tocado. Sabe aquela dor de quando se perde um ente querido, que nos coloca a ponto de questionar nossa própria existência, de revisar o sentido de muita coisa, sim é essa mesma dor que precisamos sentir quando vemos um rio poluído, ou quando vemos a derrubada de uma árvore centenária. É preciso que estes seres estejam perto, muito perto de nós, façam parte de nossa vida e de nosso campo emocional para que de fato sintamos a sua presença e a sua força como seres vivos que são.

O mundo de hoje pede urgentemente sensibilidade para as relações. Uma sensibilidade que honre o outro e a sua presença. É apenas a relação íntima que possibilita quebrar nossas carapaças de proteção, nossos mecanismos de isolamento, nossas desculpas e medos de mudar, nossa negligência e egoísmo. É apenas na relação e na escuta com o corpo inteiro que poderemos reconhecer a natureza como um ser vivo. Que conseguiremos ver seja numa pedra, numa planta ou num animal a mesma força de existência e importância diante da criação, não importa o tamanho ou a classe da criatura.

Nós não precisamos mais ver, precisamos enxergar com a pele e com o corpo inteiro, todos os sentidos, precisamos aprender a estar em contato, a estar presente, a nos relacionar. Nos relacionar com o Rio que corre ao largo da nossa cidade, estar atendo as suas mudanças, a sua interligação com outros seres que dele dependem, banharmo-nos nele. Um rio não é um rio, o Rio é inteligência e relação. Uma árvore não é apenas uma árvore perdida no espaço, ela é vida e relação. A Vida é inteligência e relação, nós somos inteligência, vida e relação. Assim é também com esses seres compostos por diversos seres aos quais damos o nome de “lagoa”, de “floresta” ou de “mar”. Não é aqui uma visão idílica, é a mais realista de todas, todos eles são entidades composta por entidades. Toda a natureza é vida e relação. Apenas a convivência, o contato, a presença e a consciência de interdependência, possibilitarão com que nós e as futuras gerações estendamos a nossa “humanidade” a todos os seres.

Eu nasci ao lado de um rio, de frente para o mar. Neste rio as pessoas pescavam e se banhavam. Eu cresci tomando banho nesse rio, remando nele. Hoje este rio está poluído e se tornou uma mera paisagem que muitos sequer param para perceber a sua presença, a sua vida e importância.  Esse rio a que me refiro está morrendo, como muitos outros estão agonizando. É preciso que isso doa em nós para que possamos nos mobilizar para algo. É essa sensibilidade que perdemos, o reconhecimento de que é uma parte de nós que morre quando um rio morre. É uma parte de nós que morre quando nós retiramos o direito de um ser à existência, quando um animal é extinto. É uma parte de nós que morre quando os oceanos são poluídos, ou quando florestas inteiras são devastadas tirando o lar de milhares de seres.

Ver não é suficiente, é preciso que doa, é preciso que doa o bastante para que questionemos nossa própria existência e o modo como vivemos. Só dessa sensibilidade teremos a força, a coragem e o discernimento para desbravar novos caminhos. Conscientes de que não se trilham novos caminhos sem medo, sem sacrifícios e sem colocar o nosso próprio ser em questão.

Tales Nunes

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