por Tales Nunes
O Hatha Yoga
O Hatha Yoga é uma prática que tem o seu fundamento no Tantra. A base de todo o ensinamento do Tantra é a visão de unidade da Vida. A multiplicidade se dá a partir da unidade fundamental. A expressão da unidade é a diversidade e a aparente dualidade. Shiva é a consciência, Shakti é o poder da manifestação. Ambos são o mesmo.
O objetivo principal do Tantra é reconhecer a unidade para além da dualidade, reconhecer-se como essa unidade. A realidade fundamental é a consciência. Essa consciência sou Eu.
Mas o Tantra também é um saber que lida com a multiplicidade, assim como o Ayurveda. Ou seja, no Tantra vemos mantras e meditações específicas para desenvolver tanto os siddhis, os poderes, quanto capacidades de cura, que também não deixa de ser um siddhi. São formas de, através do poder da mente e da intenção, interferir na realidade criando novas possibilidades. São meios de “manipular” as forças da manifestação que podem ser para benefício próprio, ou, e sobretudo, para o bem comum. É uma forma de Alquimia. Existe uma relação intrínseca entre o Tantra e a Alquimia indiana.
O Hatha Yoga é, portanto, tanto um meio de reconhecimento do pleno, completo e eterno que eu Sou, tendo o corpo como um veículo, como um arcabouço incrível de técnicas de manutenção da energia e da vitalidade do corpo e da mente. O ásana é uma dessas técnicas.
O ásana deve ser firme e confortável
Para além da forma, o ásana é uma atitude interna. Patanjali dirá no sutra II.46: O ásana deve ser firme e confortável. A postura deve ser firme e confortável. É tanto um meio de fortalecer o corpo e dar a ele flexibilidade para sentar para a meditação, quanto é um veículo de descoberta dos caminhos da própria mente. A postura em si como firme e confortável, estar no ásana dessa maneira, é desenvolver uma atitude interna diante da Vida. É descobrir, através da observação do corpo e da mente, um espaço livre de oscilações.
O ásana pode ser tanto a postura da meditação quanto as diversas posturas do Hatha Yoga. Não importa a quantidade, a variedade de posturas, a essência do ásana é, como lembra Patanjali, estar firme e confortável.
Equilíbrio entre tapas (disciplina) e ahimsa (não-violência)
A prática de ásanas é um constante equilíbrio entre tapas (disciplina) esforço, e ahimsa, (não-violência). Aprendemos a partir dos ásanas que precisamos de dedicação para a realização de qualquer empreendimento. Nesse caminho, esforço e tempo são fundamentais. É necessário um esforço em direção ao objetivo que queremos realizar e um tempo de maturação dos resultados. Isso é disciplina. Nenhum resultado no mundo relativo está fora do tempo, mudar um hábito é questão de tempo, mudar algo no corpo é uma questão de esforço e de tempo. Isso nos leva à questão de que há dois objetivos fundamentais no Hatha Yoga. Um principal e outro secundário.
O objetivo secundário é a aquisição de ganhos relativos. Seja de manutenção da saúde, de ganho de vitalidade, de obtenção de cura ou mesmo de ganhos materiais. Nesse objetivo tapas é fundamental, ou seja, calor, ascese, para que se fortaleça a intenção. Com a intenção firme, podemos realizar coisas inimagináveis. Podemos realizar praticamente todos os nossos desejos de conquista, estando eles obviamente dentro das leis do universo. Seja a aquisição de dinheiro, de fama, de viagens, tudo isso é possível com disciplina e com uma intenção firme.
Nenhuma dessas realizações, porém, nos garante a felicidade. Se a insatisfação é uma constante, não adianta realizarmos todos os nossos desejos, permaneceremos sentindo a falta de algo. Isso nos coloca então frente a frente com o objetivo principal do Hatha Yoga: reconhecer a plenitude que somos.
Para isso não adianta apenas a disciplina, é necessário conhecimento. Um conhecimento que nos abre para uma entrega, para uma aceitação plena da Vida. Nos rendemos a ela em vez de tentar nos agarrar por todos os lados, tentar dirigi-la e controlá-la de todas as maneiras. Eu me reconheço pleno exatamente onde e como eu estou, independente de alguma demanda pessoal em relação ao corpo ou à mente ser diferente. Sempre haverão limitações no corpo e na mente.
Essas duas atitudes se refletem no ásana. Excesso de disciplina sem conhecimento, pode levar à deturpação do controle. É nesse momento que ahimsa é necessário como ponto de equilíbrio. Toda disciplina deve respeitar as limitações do corpo e da mente. E a disciplina mais importante tem como alvo reconhecer aquilo que está além do corpo e da mente, o que é livre de limitação, mas sem feri-los, sem violentá-los, aceitando-os como eles são, limitados ao tempo e ao espaço. Apenas o conhecimento pleno de qual é o objetivo do Yoga pode trazer esse equilíbrio entre tapas e ahimsa para a nossa prática de ásana. Caso contrário continuaremos a repetir o engano que cometemos na vida cotidiana, de querer ter resultados absolutos daquilo que pode nos fornecer apenas ganhos relativos.
Tamas, rajas e sattva
A vida é um equilíbrio constante entre movimento e repouso. A natureza é composta pela combinação da força dos cinco elementos, terra, água, fogo, ar e espaço, movidos pelos seus três atributos, tamas (repouso), rajas (movimento) e sattva (equilíbrio).
Tamas – quando a mente está tomada por tamas, tende à letargia, ao sono, à falta de compreensão, egoísmo. No corpo, cria estagnação, preguiça, sensação de peso e exaustão.
Rajas – quando a mente está tomada por rajas, tende à ação, à dinâmica, insatisfação constante. No corpo gera movimento, impu-laho de ação e inquietação.
Sattva – quando a mente está tomada por sattva, tende à compreensão, ao aquietamento, à reflexão. No corpo gera quietude e satisfação.
Os três movimentos são essenciais para o nosso corpo e para a nossa mente. Todos têm o seu papel tanto na natureza quanto em nosso corpo e mente. Mas podemos dizer que a prática de Hatha Yoga, e especificamente de ásanas, é uma forma de movimentar o corpo, colocando-o em determinadas posturas, equilibrando permanência e dinâmica, para que floresça sattva na mente.
Geralmente nós associamos exercício físico ao constante esforço e a maior parte deles atualmente está relacionado à autossuperação e à competição, o que pode nos gerar esgotamento. Especialmente numa sociedade que estimula a competição desde que nascemos. A competição já está presente na escola, no trabalho e em vários aspectos do nosso cotidiano. Vivemos numa sociedade rajásica. Estimular ainda mais a competição na prática de exercício, em vez de ajudar em nosso equilíbrio, pode contribuir com nosso desequilíbrio.
A prática de ásana é sobretudo uma forma de cultivar sattva em nosso corpo e em nossa mente. Uma mente sáttvica abre mão da competição, porque está satisfeita consigo mesma. Ao mesmo tempo não é levada pela letargia, pois encontra estabilidade. O corpo e a mente banhadas por sattva encontram estabilidade e conforto. Isso é o que Patanjali quer dizer com o seu sutra sobre o ásana.
Aceitar-se como se é, ou seja, a satisfação consigo mesmo é em si uma saúde. Contrariamente ao que muitos pensam, o contentamento não diminui a nossa capacidade de agir mas, ao equilibrar tanto na mente quanto no corpo as forças de movimento e de descanso, aumenta a nossa potência criativa.
A entrega na prática de ásana
O Hatha Yoga é um caminho,
a descoberta de um caminhar,
calmo e firme.
O despertar de um olhar peregrino
atento e sereno
que percorre o corpo
para reconhecer que já estamos,
sempre estivemos
em casa.
É na entrega, na aceitação que aprendemos a fluir de acordo com os movimentos da natureza. Livre da pressão de ser algo, livre da pressão de precisar ter algo para ser feliz. Nessa simplicidade observamos o mundo com mais clareza, estabilidade e liberdade. Uma clareza que nos dá mais sensibilidade para enxergar a realidade e as oportunidades de movimento e de ação. Uma estabilidade que nos ajuda a aplicar a força adequada na ação, sem excesso ou gasto de energia. E uma liberdade que nos permite a calma necessária para acolher os resultados, independente de estarem ou não de acordo com a nossa vontade. Para, então, agir novamente, se necessário. Isso vale tanto para a prática de ásana quanto para a vida. A prática de ásana é o espaço onde, através do corpo, da forma como o colocamos na postura, a atitude de observação, o equilíbrio entre a permanência e o movimento, a mente e o corpo são convidados e conduzidos a esse estar no mundo mais firme e confortável.
Canais de Energia e as fáscias
Na visão Hatha Yoga, a saúde do corpo e da mente, bem como a longevidade estão associadas à flexibilidade do corpo, especialmente a flexibilidade da coluna. Entenda a flexibilidade como o movimento fluido, dentro dos limites de amplitude do seu corpo. A prática de ásanas dá muita ênfase à mobilização da coluna, em todas as suas possibilidades de mobilidade. Isso acontece porque os principais canais de energia, nadis, estão posicionados ao longo da coluna. A mobilização da coluna é fundamental tanto para a circulação de sangue e de nutrientes nos órgãos, bem como para manter o fluxo de energia e a sensibilidade dos sentidos. Os ásanas foram elaborados de tal maneira que mantém o fluxo de energia livre em todo o corpo, especialmente na coluna. E isso é fundamental para a saúde do corpo e para a acuidade da mente e dos sentidos.
A ciência tentou por muito tempo encontrar um equivalente dos canais sutis de energia no corpo físico. Suspeitou-se que fosse o sistema nervoso. Atualmente pesquisas sugerem que esse equivalente do corpo sutil no corpo físico é o tecido conjuntivo em toda a sua complexidade. O tecido conjuntivo está presente em todo o nosso corpo, nos músculos, ossos e órgãos.
Os textos de Yoga dizem que há cerca de 1.000 a 350.000 nadis em nosso copo. O número mais comum mencionado é de 72.000 nadis, sendo 10, 14 ou 15, as mais importantes, a depender do texto. Ou seja, não há parte do nosso corpo que as nadis não estejam presentes.
O mesmo acontece com o tecido conjuntivo. Ele permeia todo o nosso corpo, inclusive as nossas células. Todos os sistemas que o movem – circulatório, nervoso, músculo-esquelético, trato digestivo e os órgãos – estão cobertos por tecido conjuntivo. Além de moldar o corpo, ele o conecta por inteiro. Todas as nossas células estão conectadas por essa rede formada pelo tecido conjuntivo. Ele também faz parte do sistema imunológico.
Segue abaixo algumas imagens tiradas do livro “Trilhos Anatômicos” que ilustram alguns trilhos fasciais. O mais incrível de perceber é que nos ásanas nós trabalhamos a mobilização de todas essas linhas.
Chakras
Podemos pensar que todas as técnicas de Hatha Yoga que são voltadas para os chakras – como mula bandha, uddhiyana bandha, nasagara drishti – tem um efeito direto nas linhas do corpo da imagem abaixo, liberando tensões e facilitando o fluxo energético.
O método científico está descobrindo, a partir das pesquisas sobre as fáscias, que nenhum movimento do corpo está separado do outro. É impossível pensar um músculo separado do outro, é impossível pensar no movimento de um órgão separado do outro. Uma tensão no pé pode reverberar no pescoço. Uma tensão em um órgão, pode reverberar em outro órgão que não está necessariamente ligado a ele por uma função direta. Tudo no corpo está conectado.
O Yoga sempre viu o ser humano dessa maneira. Essa visão que para a ciência é uma novidade, para o Yoga é a essência de seu olhar. Por isso, nos ásanas, o corpo é sempre pensado em conjunto, integralmente. Os ásanas foram pensados exatamente para trabalhar o corpo em todos os sentidos possíveis de seus movimentos, num equilíbrio constante entre tensão e relaxamento, entre compressão e força, para facilitar a fluidez dos movimentos. Em outra linguagem, para manter o prana em equilíbrio no corpo. A ação de um ásana específico pode ter o seu benefício mais associado a uma região do corpo, mas ao cuidar dessa parte, o corpo inteiro está se beneficiando. Assim como vemos o corpo em si integralmente, a própria prática de ásanas deve ser vista dessa maneira.
Devemos ter cuidado ao pensar nos ásanas como remédios. Esse ásana é bom para dor de cabeça, o outro para varizes, tal postura para a circulação. A prática de Haha Yoga não deve ser desmembrada. A prática inteira é boa para isso tudo que mencionamos acima, à medida que movimenta e equilibra o corpo por inteiro.
A metáfora de uma máquina não é a melhor para entendermos o corpo na visão do Yoga. O corpo é um ser vivo no qual em cada pequena parte encontramos o Todo. E no todo encontramos a inteligência de cada pequena parte.
Ásana e Ayurveda
Kapha – (água e terra)
Para Kapha os ásanas são importantes para evitar o acúmulo de muco, gordura e excesso de água nos tecidos. É importante para a sua digestão, circulação e para libertá-los do embotamento dos sentidos e da letargia do corpo no qual tem tendência a cair.
Prática
- Posturas que mobilizem a energia, uma vez que kapha tende à letargia.
- É importante ásanas que tragam movimento e dinâmica.
- Produzir calor interno através das posturas.
Pitta (fogo e água)
O movimento de quem tem excesso de pitta é muito competitivo, para eles é importante realçar e liberar o acúmulo de calor e trabalhar a sua tendência a acumular toxinas no sangue. Reduzir o calor é o mote para a prática da pessoa com excesso de pitta. Elas precisarão equilibrar a digestão e a circulação, para reduzir o calor e apaziguar suas energias.
Prática
- Evitar o stress nas posturas devido à tentativa excessiva de competição e de controle.
- Transformar o calor em estabilidade, relaxamento através de movimentos suaves e passivos.
- Não tentar enquadrar demais o corpo à postura, deixá-la fluida.
Vatta (ar)
Pessoas com excesso de vatta precisam dos ásanas para prevenir o acúmulo de ar, para evitar a secura e o stress. Melhorar a circulação é sempre importante para a tendência a esfriamento de vatta.
Prática
- Criar estabilidade através de movimentos suaves e rítmicos.
- Uma prática que nutra, que dê acolhimento, aconchego.
- O medo é uma das características de vatta, então, trabalhar posturas que tragam segurança e bem estar.
O que os ásanas ensinam
- A energia no nosso corpo se movimenta de forma completamente integrada. É impossível movimentarmos uma parte do corpo sem afetarmos a outra.
- Há uma estrutura corporal, um padrão, que se mantém ao longo da vida, mas o corpo é sempre outro, está constantemente se movendo. As células do fígado se regeneram completamente em 06 semanas. As do estômago a cada 03 semanas. Em 07 anos todas as células do seu corpo foram substituídas. Mesmo assim, você mantém a sua estrutura, a sua forma, até o momento em que o prana deixa o corpo. O que mantém a coerência e unidade do corpo é o prana, ou seja, a sua mente.
- As partes do corpo que esquecemos tendem a ter a sua energia diminuída e estão mais propícias à doenças. Como os textos dizem, “o prana vai para onde vai a consciência”.
- O relaxamento é uma atitude mental antes de ser muscular.
- A força deve ser sempre aplicada de forma distribuída no corpo. Força aplicada de forma muito localizada tende ao desperdício.
- O seu corpo possui 12uma inteligência própria e um ritmo particular. Esse ritmo está intimamente ligado ao ritmo da natureza.
- Tanto na natureza quanto no corpo, a energia e a sua expressão física se dão em espirais e curvas. A linha reta é uma invenção da mente humana.
- Consciência corporal é um meio direto para a consciência emocional e mental.
- Movimentar o corpo de forma consciente provoca uma alteração na maneira como nos enxergamos. A mudança na forma como nos vemos tem efeito direto em nossa condição de saúde e de doença.
Tales Nunes
Referência de estudo sobre as fáscias
Trilhos Anatômicos – Thomas W. Meyers