por Tales Nunes
Há uma fantasia em nossas mentes sobre a possibilidade de criação de uma máquina do tempo. A realidade é que vivemos numa época em que as máquinas já aceleraram o tempo.
Parto do princípio de que o tempo é relativo a cada organismo, ao movimento de cada organismo dentro da sua realidade. Dessa maneira, sugiro pensarmos tanto o indivíduo quanto o corpo social e a Terra como organismos. Assim sendo, proponho que há um tempo próprio ao indivíduo, que é tanto orgânico, corpóreo, quanto mental. Há um tempo social, que se dá a partir da forma como a instituições, os fluxos de troca e as relações e as visões de mundo se organizam. E há um tempo que é o da Terra, baseado em sua organicidade, em sua relação com a Lua, com o Sol, que compõe as estações, as marés, ou seja, os seus movimentos básicos e o seu equilíbrio constante.
No último século, especialmente nas últimas duas décadas, vivenciamos uma aceleração brutal do tempo social. Não apenas a sua aceleração, como a aparente desvinculação do movimento com a história, com o percurso. As máquinas encurtaram as distâncias físicas, a velocidade de transporte facilitou os fluxos e a tecnologia digital desvinculou o movimento da historicidade. Uma viagem que durava um mês de navio, duram poucas horas de avião. A quantidade de aviões que cortam o céu nesse exato momento reduz as distâncias que antes eram percorridas pela imaginação. A produção e a circulação de bens de consumo nunca estiveram em tal patamar. Para isso a mão de obra deve ser acelerada, as máquinas precisam de velocidade. E o consumo deve acompanhar esse ritmo. Pois o lucro precisa chegar ao seu pico máximo, sempre.
Até mesmo um meio de resistência ao consumo, ao “American way of life”, que era um estilo de vida nômade, de viagem, à lá “On the Road”, foi apropriado pelo consumo, criando em nós uma necessidade de viajar como um estilo de vida, de conhecer o máximo de lugares a ponto de não conhecermos lugar algum. A indústria do turismo se tornou mais um meio de consumo, de homogeneização e para nós, mais uma forma de não permanência, de alienação. Passamos por muitos lugares, mas de fato chegamos e conhecemos pouquíssimos deles.
Mas não é só a velocidade que causa vertigem, é a falta de um caminho para se percorrer. A alienação dos meios de subsistência da vida se tornaram alienação do tempo da Terra, alienação do caminho, da própria historicidade. Os fluxos digitais não percorrem um caminho, eles chegam instantaneamente. Eles não tem historicidade. Eles simplesmente saltam aos olhos, aparecem. O imediatismo tomou conta de nossas mentes. Estamos perdendo a noção de que os eventos presentes chegaram a este ponto através de uma sucessão de eventos passados. Para que eu aprenda uma língua, precisarei de tempo, de estudo, de esforço, ou seja de história. Tudo precisa de história, de um caminho para se chegar em algum lugar.
Não sabemos de onde vem a nossa comida, não sabemos para onde vai o nosso lixo, não reconhecemos o esforço que está implícito em uma habilidade, num “talento”, simplesmente achamos que tudo isso surge no presente como uma mensagem surge no celular, sem percorrer um caminho.
Ao nos alienarmos da história, nos alienamos igualmente do corpo e vice-versa. O tempo mental se desvinculou do tempo do corpo, por isso vemos tanto desequilíbrio, seja de esgotamento (depressão) ou de hiper-aceleração (ansiedade). A alienação é consequência de diversos fatores sociais que talvez esteja acima do nosso controle mas está igualmente a serviço do consumo e da exploração dos corpos para a produção. Então, quanto mais pessoas desmembradas, divididas, separadas de si mesmas e inconscientes de onde estão e do que querem verdadeiramente, melhor, mais fáceis de serem dominadas, seja para o trabalho sem sentido ou para o consumo como compu-lahão. A alienação, portanto, é gerada tanto como resultado de um movimento social inconsciente como também é produzida conscientemente para a perpetuação de um sistema.
O tempo do corpo cobra a conexão tanto com a história, com o caminho que caminhamos, quanto com o tempo da Terra. Por mais que o tempo social tenha acelerado o nosso tempo mental, o corpo segue pedindo para pu-lahar junto com o ritmo da Terra. A história do corpo é a história da Terra, a ancestralidade da Terra está presente no corpo.
Conectar-se com o corpo e o seu ritmo é um meio de se sintonizar com o tempo da Terra. Essa é a premissa básica e a proposta fundamental do Hatha Yoga. Por isso ele é tão atual. Por isso ele é ao mesmo tempo um meio de libertação individual e um veículo de resistência social.
Precisamos nos religar ao corpo real, não o corpo associado à vaidade que é cultuado em nossa sociedade. Esse não é o corpo real, é o corpo fetiche, destituído de tato, de cheiro, de sentimentos, é o corpo virtual. Eu falo do corpo enquanto composto pelos mesmos componentes da Terra, como um microcosmo no qual podemos desvendar os seus mistérios e os seus movimentos, inclusive entender a impermanência, o envelhecimento e a morte. Eu falo do corpo enquanto fluxo do tempo e casa do Ser, ou seja, como lugar de reconhecimento de um ritmo próprio e de descoberta de algo para além do tempo e do espaço. Essa é a essência do Hatha Yoga.
Mas antes de reconhecer o eterno através do corpo, é fundamental que resgatemos o corpo enquanto parte de uma realidade histórica, como construção histórica, para que possamos desconstruir a partir dele e nele uma pressa que tomou o campo social. No qual corremos sem saber para onde vamos, sem saber de onde viemos, sem sequer ter consciência de onde pisamos.
Esqueçamos as máquinas do tempo que os filmes fantasiam e vejamos o corpo como esse campo no qual podemos desacelerar nesse exato momento, através do simples e despretensioso contato com a respiração, por exemplo. Ou por meio de um caminhar tranquilo de contemplação.
Precisamos trazer o corpo de volta para a Terra e nela termos novamente uma casa. Fazê-lo entender que a Terra é um lugar seguro, belo e sereno para ele descansar. Para que a mente entenda que o corpo é um lugar, seguro, belo e sereno para ela permanecer. Apenas essa inteireza poderá quebrar a nossa dissociação. Não permita com que o seu corpo seja dominado por um ritmo alheio, não se alheie do corpo.
Viver no próprio ritmo é um desafio diário que pede carinho e cuidado constantes no contato com o corpo, com os sentidos e com o mundo ao nosso redor. Todos nós devemos ter esse compromisso, não só pela saúde e integridade pessoais, mas pela saúde e integridade de todos.
Você não precisa correr, caminhe. Quem caminha experimenta outro tempo, o próprio tempo sintonizando-se com o tempo da Terra, sobre a qual os pés gentilmente tocam. É uma comunhão.
Você não precisa correr, caminhe.
Tales Nunes
Florianópolis, 20 de março de 2018