Será que todo saber tradicional é conservador e pode ser associado à direita política?
No coração de qualquer saber tradicional há uma hierarquia. Pode ser uma hierarquia preconceituosa e exclusiva, ou não. O problema em si não está na hierarquia. Há hierarquia no candomblé, na umbanda, na capoeira, no budismo tibetano e no Yoga. O fato dela existir no seio desses saberes não os transforma em algo associável a uma direita política ou ao conservadorismo.
Muitos desses saberes, inclusive, foram meios de resistência às invasões e às opressões a elas ligadas. O candomblé e a capoeira, no Brasil, sempre foram e são resistência do corpo, da mente e do espírito à opressão e à violência. O mesmo podemos dizer dos saberes tradicionais indígenas em suas variadas formas. Você pode conhecer sobre o saber tradicional Yanomami e a sua resistência às invasões brancas na Amazônia através da voz de Davi Kopenawa, xamã yanomami. Se não fosse o conhecimento tradicional, provavelmente ele não seria essa pessoa sábia que ele é hoje. Teria sido engolido pelo capitalismo e por um modo de vida extremamente empobrecedor do corpo e da alma.
No Tibet, o budismo foi resistência espiritual à invasão chinesa e ao projeto Maoísta de aniquilação das religiões (O regime maoísta na China e Stalinista na União Soviética nos mostraram que o totalitarismo e o autoritarismo não são exclusividades de regimes políticos teocráticos, o laicismo também pode ser justificativa para a opressão e a aniquilação de povos. Vemos que a associação entre saber tradicional e atraso toma diferentes formas ao longo da história). Mas sigamos, quando digo resistência espiritual, me refiro àquilo que mantém, mesmo que minimamente, um povo inteiro, uma pessoa inteira diante do esfacelamento de seus direitos fundamentais. Recomendo que leiam a biografia de Chagdul Tulku Rimpoche, chamada “O senhor da dança”. Através de sua história vemos como a tradição de conhecimento e de práticas podem ser uma forma de resistência pessoal e coletiva.
Com o Yoga não é diferente, há certamente dentro da tradição, ou das tradições do Yoga, autoritarismos e conservadorismos. Porém, associar o saber tradicional do Yoga ao conservadorismo e à direita política é um grande equívoco teórico.
A tradição em si se renova. Muitos dos revolucionários que questionaram os abusos hierárquicos e opressões da tradição do Yoga, foram buscar em textos como as Upanishads e a Gita argumentos contrários ao autoritarismo. Isso está presente na poesia medieval indiana em mulheres como Mirabai, Lal Ded e Muktabai. Elas não romperam com a tradição, elas são a tradição, elas romperam com a ortodoxia. Para tanto, o próprio saber tradicional as serviu de base para encontrar seus caminhos de liberdade pessoais e de enfrentamento das normas sociais opressoras.
Cito também Aurobindo. Ele lutou no movimento de independência da Índia da dominação inglesa. Seu esforço e engajamento se deu tanto em ações quanto no campo do conhecimento. Ele escreveu um livro belíssimo sobre os Vedas. Nesse livro, ele desconstrói toda uma interpretação colonialista que coloca os Vedas apenas no campo do saber religioso. E, na época em que as primeiras traduções dos Vedas foram feitas, interpretar esses livros como sendo apenas escrituras religiosas era colocá-los no campo de um saber menor, menos válido (Esse ranço ainda persiste até hoje). A grande riqueza simbólica dos Vedas foi transformada, por alguns pensadores e acadêmicos europeus, em um pensamento infantil, de um povo que não tem capacidade de pensar racionalmente. Aurobindo, portanto, se debruça sobre esses textos e nos mostra que ali há uma psicologia e uma filosofia profundas.
Hoje a própria academia, através especialmente da antropologia, repensa o lugar dos saberes tradicionais no campo do conhecimento, promovendo encontros e debates que antes aconteciam a partir de um maior distanciamento. Nesses diálogos que algumas universidades federais promovem, os convidados de dentro do saberes tradicionais indígena, do candomblé, da capoeira, benzedeiras, erveiras são chamadas de “mestres”. É uma titulação acadêmica e ao mesmo tempo um nome de reconhecimento dessas pessoas em algumas comunidades, pela profundidade do saber que carregam. Essa “hierarquia” não é opressora, é simplesmente respeito.
Quando eu trabalhei com etnobotânica na graduação em antropologia, no início dos anos 2000, nós íamos até as comunidades indígenas pesquisar sobre as plantas que lá eram usadas para as doenças mais comuns. Hoje, nesse encontros de saberes, os conhecedores das plantas vão diretamente falar na Universidade.
A academia tem aberto discussões para que esses conhecimentos cheguem direto da boca, do corpo, da mente e do coração dessas pessoas, dessas tradições, porque vê nelas um saber profundo e válido, tanto como psicologia quanto como filosofia ou epistemologia.
Portanto, associar diretamente tradição com conservadorismo e direita política, não é revolucionário, é um imenso retrocesso dentro do campo do conhecimento.
Recomendo procurar pelas palestras do antropólogo José Jorge de Carvalho no YouTube, ele é um dos idealizadores dos encontros de saberes na Universidade de Brasília.
Há alguns vídeos lindos aqui também:
Tales Nunes é yogi, psicólogo, antropólogo e mestre em antropologia. Trabalhou com etnobotânica em grupos indígenas no nordeste do Brasil. Em seu mestrado estudou a representação do corpo no Yoga.