imagem de Pauline Zenk
por Tales Nunes
Tão bela quanto profunda é a obra prima de Nietzsche, “Assim falou Zaratustra”. Nela, ele descreve as metamorfoses pelas quais deve passar o ser humano para se tornar o que se é, as transformações do indivíduo em seu processo de realização. O indivíduo alcança a sua liberdade de realização através dessas três metamorfoses. É uma belíssima metáfora para o caminho do autoconhecimento e podemos fazer aproximações com a proposta do Yoga, cujo objetivo é a abertura plena do coração a partir do reconhecimento da unidade da vida.
Nietzsche diz que inicialmente o espírito é um camelo. Carrega em si mesmo tudo o que há de mais pesado, valores, crenças que não necessariamente lhe pertencem e que pesam em seu espírito. Sequer sabe o que carrega, reconhece o peso, mas não o que pesa. Imposições que a sociedade lhe coloca e que não condizem com o seu coração, com o seu ímpeto de realização e de vida. O camelo é a obediência servil sem questionamento. É a falta de questionamento da vida, o não reconhecimento de seu papel no mundo a partir de um desconhecimento de si mesmo. Há peso excessivo e subserviência no camelo. O camelo não reconhece decerto onde está e o que está fazendo, apenas faz. Caminha e carrega, sem questionar.
Até o momento em que começa a questionar a maneira como enxerga o mundo e a si mesmo, a criar um espaço em si mesmo para o estranhamento. É o início da liberdade do peso que carrega, é o início do “não” que pode criar em si mesmo uma sensação de afastamento dos outros e dos condicionamentos e crenças passadas. É uma travessia necessária do deserto, um caminho de descoberta da própria solidão. Falta momentaneamente fontes externas para apaziguar a própria sede. Mas essa sede inicial tem a força de conduzir ao encontro de uma fonte em si mesmo, na qual todo o mundo se torna abundância e encontro. O deserto é uma passagem e uma vitória, pois as descobertas que trazem ao espírito são um início de uma subida. Precisamos da força do camelo nesse momento, que representa a perseverança, a força de seguir adiante, de suportar o deserto na busca do conhecimento e o sofrimento inicial que pode advir no caminho da realização pessoal, inclusive a sensação de isolamento e a descoberta de verdades dolorosas sobre si mesmo e sobre o mundo. Mas não precisamos de seu peso. As ilusões devem cair. A perseverança do camelo simboliza a força do espírito que busca a verdade e que deseja, acima de tudo, ser capaz de ver o que a realidade se torna momento a momento, independente do que possa causar a si mesmo.
No caminho, o camelo transmuta o peso, a dor se torna força e elevação e o espírito se torna leão. O leão é o que diz não. É o espírito libertário que se rebela contra as imposições, contra a opressão de valores impostos. O leão encontra em si os valores da vida e a exuberância da natureza e abandona o peso e o desejo de estagnação do devir, o medo da vida. É cheio de vontade, de força de transformação. O leão é o espírito revolucionário que o camelo se torna quando não mais aceita participar passivamente da realidade ao seu redor e deseja criar novas possibilidades de vida. O leão vislumbra para si mesmo novas formas de criação. A fome do leão é pela transformação da realidade, da verdade que o camelo duramente evidenciou. É ter a abertura para ser outro e por exercer o seu poder criativo no mundo, a ser também criador, a ser Devi(r). Porque ao acordar, a vida é sempre outra.
Então, súbita e naturalmente, no momento oportuno, o espírito tomado pela rebeldia ainda bélica e a reatividade do leão, supera seu ímpeto reativo e se torna puramente afirmativo. O leão torna-se a criança, um espírito lúdico e inocente que joga naturalmente com a vida, como uma grande brincadeira, Maha Lila, o jogo cósmico da vida. A criança aceita plenamente a vida, integra naturalmente as dualidades e participa como co-criador do jogo da criação. Como criança, vive plenamente, de corpo e alma, o momento presente livre do medo do devir e experiência lúdica e artisticamente a existência. É a inocência do retorno a si mesmo, de tornar realmente quem se é e amar incondicionalmente o seu próprio destino, trazido pela descoberta do amor como fonte de toda a vida.
Amar o próprio destino é fazer escolhas, usar da liberdade pessoal para agir, aceitando plenamente as consequências das próprias ações e a partir disso criar novamente, como num jogo, que é a própria vida. Amar o próprio destino não é resignação, mas aceitação da vida em toda a sua plenitude e integração de todos os aspectos de si mesmo, reconhecendo-os como forças propu-lahoras de conhecimento e de realização.
A criança é um eterno e sagrado sim à vida. É exuberância, espontaneidade, brilho nos olhos, amor e transbordamento de vida. Como diz Nietzsche, o máximo de maturidade que um homem pode atingir na vida é quando ele possui a seriedade da criança quando brinca. A criança de Nietzsche é metáfora para um coração purificado que reconheceu as próprias alturas. Que contemplou a música da criação e se permitiu dançar, que se tornou dança. Tornou-se tão plenamente ele mesmo, que se tornou Todo. E como se tornou vida, tornou-se oferecimento.
Assim como não precisamos de nenhum comando para respirar, de nenhuma ética específica para tal ação natural, da mesma maneira o coração purificado que descobriu a naturalidade da criança em si mesmo não precisa de uma conduta moral para demonstrar cuidado e afeto pelo outro, ou compaixão com o sofrimento alheio. Não há nenhuma pressão moral para isso, é um processo natural. Tão natural e envolvente e sem pretensão quanto a felicidade de uma criança quando brinca. O amor é a base fundamental de sustentação e reconhecimento de toda doação. Quando o amor de fato toma conta do coração, os valores não precisam mais ser seguidos, eles são o próprio coração.
Tales Nunes