por Tales Nunes
A oração é uma força na qual usamos a nossa vontade como impu-laho de ação para transformar a realidade e a nós mesmos. Tendemos a ver a oração como algo que está no âmbito do religioso, ou mesmo da superstição. A oração, porém, é uma ação, e como toda ação, tem o seu resultado.
Há três tipos de ação que podemos realizar a partir do nosso desejo e vontade. A ação física, que interfere diretamente no mundo material ao nosso redor ou mesmo no nosso corpo; a ação verbal, que reverbera no mundo a partir da força da nossa palavra; e a ação mental, a mais sutil delas, cuja influência na realidade não conseguimos medir ao certo, mas, como ação que é, interfere de alguma maneira.
A palavra karma significa “ação”. Toda ação tem uma causa e produz uma consequência. Nenhuma ação fica sem consequência na Vida de acordo com a lei do karma. E a consequência não é aleatória, está inserida dentro de ordens específicas da realidade. O mundo é inteligente. É a inteligência do Universo, na forma de suas ordens específicas, que torna a vida possível e que sustenta o mundo. Ao observarmos o corpo, logo vemos que a nossa vontade tem gerência sobre parte dele, mas sua maior porção é gerida por forças inteligentes intrínsecas a ele mesmo. Nós escolhemos a nossa comida, mas a forma como o corpo irá digeri-la não está sob o nosso domínio, faz parte da própria inteligência do corpo e do alimento.
Quando falamos de oração, referimo-nos a ações que podem ser prioritariamente verbais e mentais. Alguns rituais incluem ações físicas, realizadas com o corpo, mas geralmente a força das orações está na vocalização e na mentalização. E não podemos falar em vocalização sem pensar no poder da palavra. A palavra tem o poder de nos conectar. Ao entoar um mantra, ou uma oração que venha sendo vocalizada há milênios, instantaneamente nos ligamos aos outros e à força que vem sendo colocada nas palavras há tempos, o que cria um campo de vibração. Além disso, quando as palavras que entoamos carregam em si um sentido especial com o qual a nossa vontade se liga, a nossa intenção se conecta à ação criando uma força e integração próprias. Não há como medir o resultado externo da oração, seja ela oral ou mental, mas é certo que algum resultado é produzido, já que toda ação gera consequência. Já o resultado interno pode ser claramente percebido como uma sensação de integração e de pertencimento a algo maior do que nós mesmos.
A Oração e a Vontade do Coração
A oração se baseia na nossa vontade. Quando não há mais o que fazer, quando achamos que não há saída para uma situação, temos a liberdade de fazer uma oração, de oferecer uma oração. A oração estará sempre de acordo com a vontade do nosso coração. Se o coração está ansioso por alguma conquista, a oração será um pedido — seja de adquirir um bom casamento, filho, prosperidade, saúde, alívio de dores etc. Ao olharmos com cuidado não apenas para a tradição védica, mas para as outras tradições que igualmente nos abençoam com diversas formas de orações, encontraremos sempre uma oração já pronta que se adéqua exatamente ao nosso desejo, seja ele qual for.
Se, por sua vez, o coração estiver pleno e firme no reconhecimento da unidade da Vida, a oração deixa de ser um pedido para se tornar um oferecimento, um transbordamento. Só podemos doar aquilo que nos excede; o que nos falta, pedimos e ansiamos. A oração, portanto, pode ser para que todos reconheçam a plenitude que o meu coração enxerga neste exato momento. Pode ser um oferecimento de si mesmo para a Vida e para todos os seres vivos. Há diversas dessas orações na tradição védica e, geralmente, são estas as mais belas e poéticas. A oração não deixa de ser uma poesia que o coração compõe de acordo com o que sente e deseja, ou que a boca e a mente repetem, unindo o desejo do coração ao sentido mais profundo das palavras de uma oração pronta.
A Culpa e a Aceitação
A vontade é uma força especial que nos compõe, e com ela transformamos o mundo e a nós mesmos. A inteligência é um instrumento que usamos nesse processo, pois é com ela que entendemos, interpretamos e relacionamos forças na realidade para transformá-la. Uma vontade forte associada a uma inteligência aguçada e à força de realização é capaz de feitos incríveis — positivos e negativos. Toda a beleza que o homem pode criar nasce a partir da vontade, assim como toda arte, toda realização e a própria realização no caminho do autoconhecimento. Por outro lado, todos os abusos de limites e de respeito ao outro e à natureza vêm da mesma força da vontade. A vontade humana cria e destrói em proporções muito pequenas se pensarmos universalmente, mas se pensarmos em relação aos outros seres vivos, nossa vontade é incrivelmente criadora e destruidora.
Mesmo que haja diversos limites para que a nossa vontade transforme a realidade presente, as possibilidades são imensas. Tanto de transformação do mundo, quanto de modificação de si mesmo. Há, contudo, um limite total para a vontade, um tempo em que ela se torna completamente inútil. E esse tempo é o passado. A vontade tem gerência apenas sobre o presente para transformar o futuro. A vontade não muda para trás, não interfere no que já passou. O máximo que podemos fazer é re-significar o passado. Ou fazer ações que possam reparar erros cometidos, o que se chama praishtita karma.
Culpa é a vontade voltada para trás na tentativa de mudar algo que já passou. A culpa nos aprisiona e paralisa diante do temor de cometer os mesmos ou novos erros no presente em relação ao futuro. E o preço da fidelidade da culpa é o peso da estagnação. É uma incrível crueldade conosco julgarmos e condenarmos com o conhecimento que temos hoje, depois dos fatos ocorridos, aquele que agiu no passado com o conhecimento limitado que tinha. Não temos possibilidade alguma de mudar o que aconteceu, mas temos a liberdade de aceitar o passado e tudo o que já vivemos, e de amar tudo aquilo em que nos tornamos com as ações que fizemos. O primeiro passo para amar é a abertura para conhecer. Assim, conhecer se torna amar, acolher.
As orações cumprem uma função muito importante nesse processo. Quando não há o que possa ser feito na prática em relação a algo que fizemos a alguém, por exemplo, temos a liberdade de enviar orações. Inclusive, existem orações direcionadas à aceitação de si mesmo e ao acolhimento de si mesmo por qualquer ação passada feita de maneira equivocada. Nesse caso, a oração ajuda a libertar o indivíduo da culpa, que é sempre paralisante e que bloqueia qualquer tipo de aprendizado sobre a situação.
A Solidão e o Todo
Para mim, o karma pessoal é solidão. Quando digo solidão, diferencio da palavra isolamento. Isolamento é a sensação de estar sozinho. Solidão é a vivência existencial de si mesmo. A primeira é uma ilusão, pois nunca estamos isolados; vivemos sempre em relação com o outro, com a natureza e com as coisas. A vida é relação. Tudo está interconectado em teias muito complexas de causalidade e de relação. Isso é o karma. Mas quando pensamos que apenas eu vivo a minha vida e ninguém mais, a isso chamo de solidão. A tradição védica diz que a doença é karma, ou seja, é resultado de ações anteriores que fizemos. Nenhuma doença surge aleatoriamente ou de repente. A doença é uma construção, é fruto do tempo, de ações, de hábitos. A vivência da doença é sempre pessoal. Quem adoece pode estar completamente amparado por amor e cuidado, mas ainda assim vivencia a doença sozinho.
A morte é igualmente uma experiência solitária, assim como o nascimento. Nascemos com todo o amparo necessário para a nossa sobrevivência, inclusive com amor, mas a sensação da primeira respiração, o choque da saída do corpo da mãe e a sensação de separação são vivências completamente pessoais que nos compõem. Somos o somatório de ações de antes de nosso nascimento, em associação a todas as vivências que experienciamos desde o útero materno, em sincronia com as ações que escolhemos ao longo de nossas vidas. Somos completamente únicos em nossa vivência, em nossas ações e na experimentação de seus resultados. O reconhecimento dessa realidade nos desperta um senso de responsabilidade único sobre nós mesmos, ao mesmo tempo em que nos damos conta de que essa responsabilidade é sempre em relação com o outro. Nossa vida depende intrinsecamente das ações que fazemos ao outro e à natureza como um Todo. Portanto, nunca estamos de fato sós, mas sempre em relação.
A oração é também uma forma de nos relacionarmos com o outro, de, na intimidade de nossa vivência pessoal, reconhecermos o outro em nós, como igual e como diferente. Em última instância, de reconhecermos o Todo em nós. Na tradição védica, há orações que se destinam aos planetas, outras às pequenas ações do dia-a-dia, exatamente para nos lembrarmos da relação entre o mais amplo e o mais singular, dessa nossa constante e essencial relação com o Todo. São orações que dissolvem o senso de isolamento, mas que, ao mesmo tempo, nos recordam de nossa responsabilidade com o Todo e com a nossa própria vida.
A unidade da Vida e a Oração
A oração é sempre um apoio que tem o seu assento sobre a maturidade do reconhecimento de que não estamos no controle das situações ao nosso redor. A nossa vontade e inteligência são transformadoras, mas a própria inteligência deve reconhecer que há forças muito maiores do que ela. Deve perceber que nunca conseguiremos entender as situações da vida por completo, pois é impossível entender todas as variáveis que influem na nossa ação e que podem direcioná-la para caminhos completamente diferentes dos que imaginamos.
Portanto, ao que não nos cabe controlar, faz-se a oração tanto para que eu reconheça os meus limites, quanto para que a própria ação mental e oral possa ajudar no processo. As orações, nesse sentido, podem ser direcionadas às várias forças da vida. Ganesha, por exemplo, representa a força que remove os obstáculos. Ao orar para Ganesha, pede-se que os obstáculos que possam estar no caminho sejam removidos e, ao mesmo tempo, reconhece-se que há forças muito maiores que a vontade individual no processo.
É importante lembrar que a oração é um apoio no caminho. As ações são os nossos pés, e a base segura sobre a qual caminhamos são os valores, a nossa conduta na vida. Não adianta levar a fala e a ação mental numa direção e as ações práticas noutra completamente diferente, pois estas, afinal, têm mais força e concretude do que aquelas. Os obstáculos no caminho são criados ou facilitados de acordo com o quanto respeitamos o próprio solo sobre o qual pisamos. Os valores são a própria força da terra no coração. Na mesma proporção que respeitamos a Vida, somos por ela respeitados.
O Universo inteiro é uno e não separado, entremeado por uma causalidade complexa que não conseguiremos nunca abarcar completamente. Mesmo assim, conseguimos contemplar a unidade da Vida como uma verdade guardada no coração de cada um de nós. A oração deve nos conduzir, junto com o conhecimento, ao reconhecimento da unidade da Vida, ou seja, deve nos fazer contemplar a plenitude e o amor como fonte de nós mesmos. Quando isso acontece, o coração não mais pede, doa. E a oração não mais demanda, oferece.
* Artigo originalmente publicado na edição 44 dos Cadernos de Yoga.
Tales Nunes