por Tales Nunes
Definir o Yoga é definir a busca humana
Dentro dos textos da tradição védica, a palavra “Yoga” é usada para definir o caminho que se trilha, o caminho do autoconhecimento, e ao mesmo tempo o objetivo final dessa busca. Analisaremos neste texto o significado do Yoga e a sua relação com Vedanta desde as Upanishads, passando pela Bhagavad Gita, até o Yoga Sutra de Patañjali.
O ser humano é uma preciosidade. Dentro do caminho do Yoga, precisamos reconhecer primeiro o que é esse ser humano e depois a preciosidade que ele é. Fisiologicamente o ser humano não é diferente dos animais. As proteínas que compõem o nosso corpo não são tão diferentes das proteínas que compõem um alface. Drogas que funcionam no sistema nervoso de um rato, funcionam igualmente no nosso. A preciosidade humana é o fato de ser autoconsciente, auto-evidente. Essa autoconsciência nos dá a liberdade de escolher. A todo momento estamos escolhendo. Podemos resumir toda a nossa vida a escolhas do que comer, do que ver, do que escutar, do que vestir. O ser humano, dentro daquilo que ele conhece, pode ser e desejar qualquer coisa. Isso é o que torna os seres humanos tão diferentes culturalmente uns dos outros.
O que há em comum no ser humano, seja ele de qualquer parte do mundo, dentro de qualquer cultura, é a busca pela felicidade. Todos nós buscamos a felicidade. Essa é uma fórmula essencial para a compreensão da conduta humana. As nossas ações são direcionadas a esse fim. Seja na busca por experiências com drogas, nos nossos relacionamentos amorosos, na aquisição de bens materiais, o pano de fundo dessas ações é a busca por felicidade.
Essa felicidade, porém, parece ser impossível de ser alcançada. Logo que conquistamos algo que nos deixa feliz, segue um receio de se perder o que foi conquistado, ou simplesmente a mente se entedia. Nessa busca, então, sentimo-nos frustrados, pois não nos contentamos com uma pequena alegria momentânea. O que queremos, de fato, é a felicidade plena, mas buscamos no lugar errado.
É aí que entra o Yoga (como tudo o que vai nos apoiar na compreensão do Conhecimento) e o Vedanta (como meio de conhecimento). Vedanta nos fala que nós já somos a plenitude que nós buscamos. Vedanta é o conhecimento contido na parte final dos Vedas (Upanishads) e que nos fala sobre esse Ser ilimitado que nós somos. Fala sobre essa busca fundamental, que é a busca por moksha, como alcançar esse fim, e qual o ganho que advém disso.
A nossa real natureza é consciência e plenitude. E essa é a razão de não nos contentarmos com menos do que isso. Não nos contentamos com menos do que somos, queremos esta mesma grandeza, só que de fato nunca a encontraremos em experiências. O que falta no ser humano é o reconhecimento de que já somos a plenitude e a felicidade que buscamos em situações e experiências. E para isso é necessário uma mudança de olhar, de foco. A solução é um conhecimento. O conhecimento do eu ilimitado que sou, além do complexo corpo, mente.
Fundamentalmente, realização pessoal, liberdade, ou moksha, o objetivo da vida humana de acordo com Vedanta, é esse reconhecimento. Porém, podemos dizer que, relativamente, já é um grande ganho descobrir que eu sou a fonte da minha felicidade – não no sentido egoísta, mas no sentido mais profundo – e que os objetos ao meu redor não têm qualidade de felicidade, mas apenas fazem com que eu relaxe e abra mão, momentaneamente, das minhas expectativas, das projeções para o futuro, da mania de me comparar com os outros e da minha sensação de limitação. Essa percepção já me torna mais atento dentro dos papéis sociais que eu cumpro, evitando com que eu queira sempre extrair a minha felicidade das relações e do mundo.
É importante reconhecermos que apesar de ser um processo compreensivo, moksha não se dá instantaneamente. Para a maior parte das pessoas é um processo. Apesar de fazer todo o sentido, não é simples reconhecer que somos a felicidade e a paz que buscamos, sobretudo se sequer temos uma paz relativa. É preciso descobrir uma paz relativa para compreender que sou a paz absoluta. Para isso, o Yoga é um apoio. Para muitos pode incluir o que nós conhecemos como Hatha Yoga: asana, pranayama, mudras, meditação, mas deve incluir também o que é apresentado nos sutras de Patañjali e na Bhagavad Gita: que é a importância do questionamento e do desapego, o reconhecimento do valor que os valores têm na vida, a atenção nas ações e uma postura compreensiva diante do resultado dessas ações. Ou seja, é toda uma vida de Yoga que é proposta nesses dois textos.
Nessa Vida de Yoga é necessário coragem, disciplina, auto-estudo, desapego, pois precisaremos lidar com apegos, condicionamentos, “traumas”. E talvez seja importante, nesse processo, procurar ajuda terapêutica, dependendo da intensidade das emoções e dos “nós” que são mexidos. Às vezes estamos tão imersos em nossas ilusões que não conseguimos ver as situações com clareza. E só de expressar essas situações para uma outra pessoa já nos ajuda a nos organizarmos, a nos reconstruirmos. Porém os textos de Yoga, em si, falam sobre nós mesmos e as reações da nossa mente e nos ajudam a nos enxergamos com mais clareza e compreensão. Ao estudarmos os sutras de Patañjali, por exemplo, temos um claro e objetivo mapa da psique humana, mais profundo e antigo do que qualquer tratado psicológico ocidental.
Em resumo, todo e qualquer tipo de apoio usado no caminho do autoconhecimento faz parte de uma Vida de Yoga que irá conduzir, junto com o estudo de Vedanta, à compreensão de quem realmente somos, e ao reconhecimento do ser humano, de nós mesmos, como uma preciosidade. Esse é o objetivo do estudo que está contido nos Vedas.
Os Vedas
Os Vedas são quatro: Ṛg Veda, Yajur Veda, Sama Veda e Atharva Veda. Estão divididos em três seções: Karma Kanda, Upasana Kanda e Jñana Kanda. A primeira fala sobre as ações, a segunda sobre as meditações e a última sobre o Conhecimento.
As duas primeiras constituem a parte formal dos Vedas, que se chama Veda Purva, a parte final dos Vedas, e tem como objetivo a preparação da mente, a remoção dos obstáculos para que haja a compreensão da parte final dos Vedas. Nessa primeira parte dos Vedas existem meditações (upasanas) e ações rituais que têm como objetivos Antarkaranam shuddhi (purificações), liberação dos vasanas (obstáculos) que aprisionam a mente, para que o estudante tenha a clareza no estudo e adquira uma mente apreciativa. O objetivo das upasanas é que o estudante tenha uma mente pura, tranquila. Podemos dizer que embrionariamente Ayurveda, Astrologia Védica, Simbolismo Védico, Vastu Shastra estão embrionariamente contidos nessa primeira parte dos Vedas. Posteriormente, esses conhecimentos foram sendo elaborados a partir de textos específicos sobre cada tema.
A parte final dos Vedas, por sua vez, Vedanta, é o que chamamos de Upanishads. O estudo das Upanishads requer uma certa maturidade e preparação por parte do estudante. Primeiro, porque o ensinamento ali contido está numa linguagem simbólica e metafórica; segundo, porque vai-se direto, sem arrodeios, ao assunto mais sutil, a identidade entre o indivíduo e o todo. As próprias historinhas contidas nas Upanishads nos mostram a preparação dos estudantes. Os discípulos que aparecem nessas histórias são altamente qualificados, ou seja, tem uma mente capacitada para sentar e escutar o ensinamento. Se não se possui essa mente, é preciso fazer ações e passar por um processo de preparação.
As Upanishads
Como dissemos, Upanishad é a parte final dos Vedas. O que se chama de Vedanta. Existem várias Upanishads em cada Veda. É dito que existem 108 Upanishads. Outros especulam que chegue a existir 1008. Dentro do estudo de Vedanta são dez as Upanishads mais estudadas: 1) Isha Upanishad (Yajur Veda); 2) Kena Upanishad (Sama Veda), 3) Katha Upanishad (Yajur Veda), 4) Prashna Upanishad (Atharva Veda), 5) Mundaka Upanishad (Atharva Veda), 6) Mandukya Upanishad (Atharva Veda), 7) Taittiriya Upanishad (Yajur Veda), 8 ) Aytareya Upanishad (Ṛg Veda), 9) Chandogya Upanishad (Sama Veda), 10) Brhadaranyaka Upanishad (Yajur Veda).
Essas dez são as mais importantes. O que as tornam mais importantes são os comentários dessas Upanishads feitas por SHaṅkaracharya e outros mestres. Estudando essas dez, pode-se estudar sozinho qualquer outra e compreender perfeitamente, pois a essência do ensinamento é o mesmo em qualquer Upanishad.
Tema das Upanishads
É nas Upanishads que está contido o conhecimento específico sobre o que é Brahman. Esse conhecimento é chamado de Brahmavidya. O tema das Upanishads é dizer: esse sujeito Atman, você mesmo, é Brahman, o Todo. Esse você mesmo, que se acha pequeno e insignificante e que constantemente busca a felicidade fora, é em si mesmo pleno e livre de limitação, é a base de toda a criação.
Para revelar esse fato ao buscador, as Upanishads não falam sobre uma Vida de Yoga com os detalhes que são apresentados nos Yoga Sutras e na Bhagavad Gita. Está implícito que todos já sabem o que é essa Vida de Yoga. E pela necessidade que os estudantes apresentam aos mestres, essa explicação não se faz necessária. Vejamos, então, brevemente, os ensinamentos, o contexto e como o Yoga aparece em duas importantes Upanishads.
O Yoga nas Upanishads
O Yoga na Katha Upanishad
A Upanishad começa, como todas as outras, com um mantra da paz, um shantipatah. O mantra de paz desta Upanishad é o que muitos professores de Yoga cantam no início de suas aulas, o sahana vavatu. Em seguida, a Upanishad traz uma historinha. A essência da história é o diálogo entre um jovem rapaz chamado Nachiketas e o deus da morte Yama. Em determinado ponto do enredo, três desejos são concedidos a Nachiketas pelo deus da morte, o terceiro que ele escolhe é saber o que acontece após a morte.
Relutante em revelar os segredos do pós-morte ao menino, Yama oferece a ele o que quisesse de bens materiais: saúde, beleza, mulheres, filhos, riqueza. Nachiketas não se rende a tais tentações e retruca que tudo o que lhe foi oferecido é perecível e de nada vai lhe servir depois da morte. O que ele realmente deseja é o conhecimento total, o conhecimento que traz a imortalidade, o conhecimento sobre o absoluto.
Diversas Upanishads trazem historinhas semelhantes, em diferentes contextos, que tem como intuito ilustrar o campo no qual o conhecimento se frutificará. O objetivo da história contada é mostrar a preparação do estudante. Mostrar a atitude de confiança no mestre e ao mesmo tempo a maturidade do estudante. Esses discípulos qualificados ajudam-nos também no nosso próprio caminho à medida que nos espelhamos neles.
Essas qualidades são enfatizadas em textos posteriores de maneira direta, como vemos na Bhagavad Gita e nos Yoga Sutras. Nas Upanishads é apresentada através de historinhas. Podemos ver implicitamente na historinha da Katha Upanishad, que Nachiketas teve vayragya, desapego, ao não aceitar o que lhe foi oferecido; teve viveka, o discernimento entre o eterno e o não eterno; teve shama (comando sobre a mente); e dama (comando sobre os órgãos dos sentidos) ao manter-se firme no seu propósito, resoluto e com a mente tranquila, deixou o Deus da morte falar; ele teve noção de qual era o seu papel, dharma, enquanto filho, uparati, uma vez que foi até o Deus da morte para cumprir as palavras proferidas pelo seu pai; teve shrada, confiança no mestre, ao saber que Yama é a melhor pessoa para lhe ensinar isso; Titiksha, paciência e firmeza, ele foi resoluto ao esperar durante três dias o Deus da morte; e, finalmente, mumukshutvam, desejo pela libertação, ao manter-se resoluto no objetivo final.
Depois de contada a historinha que representa o contexto do ensinamento e as qualificações do estudante, começa o ensinamento em si, sempre da boca de um mestre ao ouvido de um discípulo que deseja escutar. Aqui o mestre é Yama que em determinado ponto da Upanishad faz uso da conhecida metáfora da carruagem para fazer o menino entender a importância do comando sobre a mente no caminho do autoconhecimento.
“Imagine o Ser como o senhor de uma carruagem realizando uma jornada. O corpo é a própria carruagem. O discernimento é o cocheiro. A mente, as rédeas.”
Nessa bela metáfora, a carruagem representa o corpo humano, o cocheiro da carruagem é o intelecto (buddhi), as rédeas são a nossa mente e os cavalos são os sentidos, as curvas da estrada são as curvas da própria vida e o senhor da carruagem é o Ser, que nada faz. O objetivo da vida é descobrir esse Ser. E nós devemos conduzir a nossa mente, direcionada pelo intelecto, nesse sentido.
A Upanishad, através dessa bela metáfora, aponta para a importância do Yoga dentro do caminho do autoconhecimento, nos indicando, indireta e não detalhadamente, uma Vida de Yoga. A charrete sozinha não vai para lugar algum, vai depender para onde nós comandamos a carruagem. A carruagem é um instrumento para se chegar em algum lugar. Esse instrumento deve ser conduzido e os meios com os quais nós conduzimos a nossa vida ao autoconhecimento é Yoga.
Vejamos como o Yoga aparece noutra importante Upanishad.
O Yoga na Kena Upanishad
Essa é uma pequena, mas importantíssima Upanishad. Ela pertence ao Sama Veda. Chama-se Kena porque a primeira palavra do texto é “kena” (“através de quem”, “por quem”).
A Upanishad é um diálogo entre um discípulo e o mestre. Começa também com um mantra de paz. Diferente da Upanishad anterior, na qual a história inicial se prolonga, aqui o enredo já se inicia com o ensinamento. O discípulo faz uma pergunta ao mestre. A pergunta já nos revela que o discípulo refletiu sobre o tema e que já estudou com profundidade o assunto. O assunto é o mesmo, o Ser absoluto, a real natureza do indivíduo, livre de limitação. Em resumo, a pergunta do discípulo é:
“Comandada pelo desejo de quem a mente vai [para diversos objetos]? Por quem é comandado o funcionamento do prana, que é o primeiro? Pelo desejo de quem [as pessoas] falam estas palavras? Qual o poder que impele os olhos e os ouvidos [a objetos]?”[1].
Essa não é uma pergunta qualquer. Assim sendo, não terá uma resposta trivial. A partir da pergunta, o ensinamento começa e é desdobrado no decorrer do texto. Adiante, a resposta é dada. O discípulo, qualificado, atento à resposta e desejoso por conhecimento, compreende. O mestre pergunta se ele compreendeu, ele responde que sim. O mestre então questiona a sua compreensão. Então o aluno pensa um pouco mais e responde de tal maneira que o mestre realmente reconhece que o assunto foi compreendido.
Acaba o ensinamento, e todos ficam em silêncio. Então um aluno levanta a mão e pergunta: “Ó senhor, ensine Upanishad”. O mestre responde: “A Upanishad já foi ensinada. O que nós ensinamos foi Upanishad, que tem como tema Brahman”.
Na pergunta, o mestre reconheceu que na verdade ele não estava pedindo para ensinar Upanishad, ele estava pedindo uma ajuda para entender Upanishad. Nesse contexto, essa ajuda para compreender Upanishad é Yoga. Então o mestre responde ao aluno que para o conhecimento da Upanishad, para poder adquirir esse ensinamento é preciso uma upaya, um apoio. São vários os apoios, dependendo do discípulo, mas aqui, no contexto da Upanishad, o sugerido é:
Tapas – disciplina do corpo, dos órgãos, da mente. Capacidade de ter um comando sobre a própria mente, para ajudar a desenvolver dama e não se deixar ser levado pelas fantasias da mente.
Dama – a capacidade de ter um comando sobre os órgãos de ação, de ter uma calma suficiente para não agir por impu-laho.
Karma – cumprir com os deveres, fazer o que deve ser feito, da melhor maneira, de acordo com os valores.
A Upanishad nos sugere que essas três coisas são fundamentais ao estudo dos Vedas e do Yoga. O próprio estudo traz uma disciplina da mente. Ao mesmo tempo, outras Upanishads indicam que o coração da disciplina deve ser a Verdade. O exercício da verdade, da sinceridade, no falar, em todas as áreas da vida.
Em síntese, podemos dizer que o que vai nos ajudar e o que vai nos dar o apoio na Vida de Yoga são os valores, que é o corpo do autoconhecimento. Os pés, a base, são os estudos dos Vedas. O coração é a verdade. Com esse compromisso, o conhecimento vai desabrochar em nós.
A pessoa que compreende o conhecimento da Upanishad e elimina papam da sua vida (obstáculos), descobre e permanece na plenitude, que é Si mesmo. E tudo aquilo que serve de apoio para a compreensão desse conhecimento de acordo com as Upanishads, repetimos, é Yoga.
O Yoga na Bhagavad Gita
A Gita faz parte do grande épico Mahabharata. O Mahabharata é uma longa epopéia e dentro dela está contido o dialogo entre Krshna e Arjuna. A Bhagavad Gita, dentro da tradição védica, é vista como um Yoga Shastra e Brahma Vidya, fala sobre a preparação da mente e ao mesmo tempo fala sobre o Ser eterno, sobre a real natureza do indivíduo. Na Bhagavad Gita o estudo de Vedanta vem junto com a prática de Yoga. Os dois pertencem à tradição dos Vedas e são, podemos dizer, inseparáveis.
A Bhagavad Gita é o principal texto de Vedanta, pois é o mais completo. Na Gita todos os assuntos são abordados. Como dissemos, os textos fundamentais de Vedanta são as Upanishads, porém é na Gita que encontramos todos os assuntos abordados no ensinamento de Vedanta, incluindo o assunto principal das Upanishads, o conhecimento de Brahman.
A Gita tem 18 capítulos e 700 versos. Ela pode ser dividida em três partes de seis capítulos. Os seis primeiros falam essencialmente sobre o indivíduo, os seis seguintes sobre o Todo e os seis últimos sobre a relação entre o indivíduo e o Todo.
O primeiro capítulo é chamado de “a tristeza de Arjuna”. A primeira coisa que se estabelece é o estado de espírito de Arjuna, para ele fazer a mudança que é necessária no caminho do autoconhecimento, o desejo de pedir por conhecimento. Para isso, o primeiro capítulo apresenta-nos a tristeza e o sofrimento de Arjuna frente a uma situação muito delicada que não era o que ele desejava de maneira alguma, ter que guerrear contra seus próprios parentes. Naquele momento, Arjuna se deu conta de que a guerra era um fato, porque antes ele tinha apenas a idéia sobre a guerra. Toda a história do que antecede a guerra é contada no Mahabharata. E é aqui, no início da Gita que o grande guerreiro subitamente pára e percebe tudo o que está à sua frente e o que é preciso fazer, mas falta-lhe coragem.
Então ele tenta convencer Krshna de que a melhor coisa a fazer é desistir da guerra. Nós também fazemos isso quando estamos em uma situação que envolve uma difícil decisão. Tentamos convencer a outra pessoa de que o que achamos ser melhor fazer é o mais adequado, porque apoiado na opinião daquela pessoa dizemos: “fulano também pensa assim, ele me apoiou completamente e eu me sinto mais seguro para fazer a ação”.
Note que a Gita começa a partir de um conflito humano. Um conflito sobre o que é adequado fazer, sobre a ação. E ao mesmo tempo um conflito entre perdas. De qualquer maneira que Arjuna aja, a perda vai ser muito grande. Às vezes, na vida, estamos anestesiados e não nos perguntamos qual é o sentido da vida e o objetivo final dessa vida. Seguimos apenas em busca de segurança e conforto. Porém, quando expostos a alguma situação limítrofe, na qual sofremos ou estamos prestes a sofrer uma grande perda, começamos a nos perguntar sobre essas questões. E é assim que começa a Gita, muito diferente das Upanishads, que começam já com questionamentos profundos e nada há de sofrimento ou de conflito em relação a si mesmo, à ação ou à auto-imagem.
É como se a Gita falasse mais intimamente para nós hoje, para os conflitos que vivemos no nosso dia-a-dia. E com isso nos propõe um processo, um caminho de preparação para a assimilação desse conhecimento, uma Vida de Yoga muita clara é apresentada na Gita por Krshna em compaixão ao sofrimento que Arjuna está passando. Para quem sofre, primeiro, é importante aliviar o sofrimento, acalmar a mente, para depois estar apto a compreender o ensinamento.
Apesar de ser uma pessoa altamente qualificada, um grande guerreiro que em suas histórias sempre mostrou determinação e foco mental, Arjuna tenta de tudo no capítulo I para convencer Krshna de que aquela guerra não seria boa, que iria destruir as famílias, que o dharma iria declinar, que iria matar os parentes em nome de riqueza e reinados. A confusão foi tamanha que ele esqueceu a verdadeira razão da guerra, as emoções tomaram conta do seu ser. Arjuna viu que quaisquer das decisões que tomasse envolveriam perdas, e ele ficou na dúvida do que seria menos sofrido fazer naquele momento.
Ele diz então que o melhor seria deixar os adversários ganharem, tentando aparentar uma atitude de humildade e nobreza. E Krshna responde, “não pense que essa atitude é uma atitude nobre, você está fugindo da sua obrigação”. Não ache que todos vão pensar que você é uma pessoa nobre e cheia de compaixão que deixou eles vencerem e ficar com tudo. Todos vão pensar que você ficou com medo e abandonou o campo de batalha e o dharma.
E o primeiro capítulo fecha com a fala:
“Arjuna, cuja mente está tomada de tristeza, falando desta forma e abandonando o arco e as flechas, sentou-se na carruagem, no campo de batalha”.
Assim, ao longo da Gita. Krshna ajuda Arjuna a acalmar a sua mente, a olhar para si mesmo e a reconstruir a imagem que ele tem de si mesmo. E no processo, Krshna fala sobre o valor que os valores têm na Vida de Yoga, como condição sine qua non para se ter uma mente tranquila; fala sobre Karma Yoga; sobre o controle sobre os órgãos dos sentidos, dama, e o controle sobre a mente, shama; e fala sobre a importância de viveka, o discernimento e vairagya, desapego, como ferramentas essenciais no caminho do autoconhecimento, na descoberta de Si mesmo.
Ou seja, essencialmente o que é ensinado na Gita é o que está contido nas Upanishads, porém, no contexto da Gita, pela necessidade do discípulo, fez-se importante falar com mais cuidado sobre o Yoga e toda uma Vida de Yoga, todo esse apoio diário para se compreender a frase essencial, “Eu sou o Todo”, eu sou a plenitude que busco fora de mim.
O Yoga nos Yoga Sutras
Ao estudar os Yoga Sutras logo vemos o estilo sistemático do autor, que se esclarece ao sabermos quais foram os outros dois textos atribuídos a ele. É atribuído também a Patañjali, o autor do Yoga Sutra, dois outros textos, um sobre medicina, outro sobre gramática.
Os Yoga Sutras tem um formato diferente dos citados anteriormente e está escrito em forma de sutra, frases curtas e condensadas que se encadeiam umas nas outras. E nesse formato, diferente dos textos acima citados, não cabem historinhas para ilustrar situações, vai-se direto ao assunto sobre o qual o texto se propõe a abordar. E aqui o tema é o Yoga.
Para que compreendamos o significado dos sutras em toda a sua amplitude, é necessário interpretarmos um sutra em relação ao outro e remetermos ao contexto no qual o texto está inserido. O contexto é a cultura védica, ou seja, a cultura dos Vedas. Patanjali, em seu texto, não fala nada novo em relação ao autoconhecimento ou ao Yoga. Pelo contrário, ele retoma o tema contido nas Upanishads, que é o conhecimento sobre a nossa real natureza, livre de qualquer limitação.
O que ele faz nesse preciso e cuidadoso texto é explicar com mais cuidado e compaixão os caminhos da mente humana. Logo no segundo sutra o autor define o que é Yoga. E nessa definição entendemos Yoga como o meio de preparação para o autoconhecimento e ao mesmo tempo o estado que se alcança com a compreensão do conhecimento sobre Si mesmo. Na sua definição yogashchittavrttinirodhah, “Yoga é a desidentificação com os movimentos da mente”, vemos o Yoga como o estado final. No decorrer do texto ele vai apresentar o caminho do Yoga, o que nos tira do estado, os obstáculos a se ter uma mente tranquila para a compreensão final, e, posteriormente, uma miríade de dicas para a permanência no estado de paz.
Patanjãli, no Yoga Sutra, não fala muito sobre a natureza do sujeito, como se fala nos textos citados anteriormente. O foco é no método para alcançar isso. Ele mostra aquilo que pode nos ajudar a permanecer nesse estado. Ele não fala com tantos detalhes sobre qual é a verdadeira natureza do Sujeito, isto já está bem claro nas Upanishads e na Gita. Patanjãli foca na preparação e na disciplina, para que, assim, possamos entender o que as Upanishads querem dizer e possamos chegar a essa compreensão. Para isso ele propõe, entre outras coisas, o famoso caminho de oito partes:
1) Yamas, em relação à ética, é o que não devemos fazer para que possamos nos manter em paz em relação a nós mesmos e aos outros.
2) Niyamas é o que devemos fazer para mantermos acesa a chama da busca pelo autoconhecimento.
3) Asanas é a busca por estar confortável dentro do corpo, a partir do reconhecimento de que o corpo busca a sua estabilidade no mundo, e eu busco a minha estabilidade momentaneamente dentro desse corpo. É ver o corpo como ferramenta e objeto de aprendizado e não como o sujeito, como Eu.
4) Pranayama é o controle e expansão do prana como forma de ter um comando sobre a mente.
5) Pratyahara é o controle do alimento, é o comando sobre os órgãos dos sentidos e a consciência do que eu dou de alimento à mente. A partir desse comando posso ter um melhor comando sobre a minha própria mente, shama.
6) Dharana, 7) dhyana, 8 ) samadhi, são as práticas internas que conduzem à libertação. É a condução voluntária da mente a um determinado assunto e a capacidade de permanecer nele por determinado período. E o assunto proposto para essa permanência é o conhecimento sobre o Sujeito, sobre o Eu livre de limitação. Esse conhecimento conduz o indivíduo a não identificação em relação à própria mente e conduz ao estado de contemplação. A mente contemplativa, diz Patanjali, é Yoga, assim como o apoio para se chegar a essa mente contemplativa é Yoga. Yoga é aqui, portanto, o meio e o fim.
O reconhecimento da unidade do Yoga e o reconhecimento da unidade da busca humana
O objetivo de toda essa tradição é revelar ao indivíduo que ele já é aquilo que busca, plenitude, liberdade. Se já sou o que estou buscando, a minha ansiedade e o meu sofrimento se tornam uma ignorância. É como se eu desejasse ardentemente ir para a minha casa já estando dentro de casa. Nada preciso fazer para ir para a minha casa, se já estou em casa. O que preciso é reconhecer que estou em casa. Nesse sentido os Vedas revelam-nos esse fato desconhecido por nós, servindo-nos de espelho. Quando olhamos para um espelho, o objetivo é olhar para nós mesmos, não para o espelho. Nós olhamos para nós mesmos no espelho porque os olhos não têm a capacidade de revelar o nosso próprio rosto. Da mesma maneira, quando olhamos para as Upanishads, não estamos em busca das Upanishads em si, estamos em busca de nós mesmos. Quando olhamos para as Upanishads nos vemos, porque sozinhos não conseguimos nos enxergar. As Upanishads nos refletem e ali nos reconhecemos. O objetivo final das Upanishads, como textos de Yoga e de Vedanta, é revelar o Sujeito a esse indivíduo que se acha limitado. E o objetivo de todos os textos relacionados a esse assunto é o mesmo. Só que a ênfase dada ao caminho, à Vida de Yoga como apoio a esse reconhecimento varia de época para época de acordo com as necessidades dos buscadores.
Esse conhecimento contido nas Upanishads, que vem de tempos remotos, permanece vivo até os dias atuais. Ele chega até nós através de diferentes textos posteriores às Upanishads e alguns muito recentes, mas que as têm como referência. Para não nos perdermos dentro de conceitos e classificações no tempo e no espaço, é importante darmos o crédito ao conhecimento das Upanishads, seja através do estudo das próprias Upanishads ou de outros textos mais recentes à luz das Upanishads. Para reconhecermos a unidade do Yoga é importante, em algum momento, olharmos esses textos não apenas com os olhos de análise do texto – como se somente analisássemos o espelho esquecendo que o espelho nos reflete, e por nos preocuparmos em ficar analisando o espelho, esquecemos de nos ver ali refletidos – mas com a abertura para realmente vermos se há sentido, não para nós, mas em nós, no que ali é dito. Ao nos reconhecermos nesses textos, certamente reconhecemos a unidade da tradição védica e do Yoga como um meio de conhecimento que tem como objetivo responder com clareza as perguntas humanas fundamentais sobre a busca da felicidade, sobre o indivíduo, sobre o Todo e sobre a unidade entre o indivíduo e o Todo.
Tales Nunes
* Artigo originalmente publicado na edição 29 dos Cadernos de Yoga
[1] Tradução de Gloria Arieira da Kena Upanishad, publicada na edição 06 dos Cadernos de Yoga.